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Como acontece com praticamente tudo hoje em dia, Zack Snyder é costumeiramente admirado e odiado irrestritamente por grupos inconciliáveis de fãs que discutem aos berros – mas protegidos pela distância e anonimato das redes sociais – as qualidades e as deficiências do cineasta. Tenho para mim, porém, que existem dois Zack Snyders e por uma razão muito compreensível. Há o Zack Snyder que eu gostava muito e que fazia ótimos filmes (ainda que não somente ótimos filmes) até meados da produção de Liga da Justiça, quando sua filha tragicamente se suicidou; e há o Zack Snyder que eu não mais consigo gostar e que só faz atrocidades cinematográficas atrás de atrocidades cinematográficas. O que antes era um diretor competente com uma assinatura inegavelmente autoral mesmo comandando blockbusters, agora é um diretor perdido, que transformou seu estilo em uma caricatura, seu olhar atrás das câmeras em um reflexo de uma megalomania horrorosa que dá tristeza ver, ainda que seja perfeitamente compreensível a base – ou pelo menos, imagino, a base principal – dessa sua transmutação. E a ópera espacial em duas partes Rebel Moon é mais um resultado dessa sua franca decadência.
A Menina do Fogo e A Marcadora de Cicatrizes – dois subtítulos tenebrosos, vale dizer – foram produzidos e lançados pelo Netflix com toda a pompa e circunstância em, respectivamente, 22 de dezembro de 2023 e 19 de abril de 2024, mas com obsolescência programada, por assim dizer, já que houve o anúncio simultâneo de que “versões do diretor” ganhariam a luz do dia algum tempo depois. Chamem de jogada de marketing, de demanda de estúdio, de hubris de diretor, mas, por mais que eu goste de ver versões alternativas de filmes (e eu gosto muito, para o mal ou para o bem) tenho para mim que a razão para elas existirem precisa ser orgânica, precisa ser parte de um processo que revisita as obras originais na tentativa de melhorá-las ou de pelo menos aproximá-las da visão original do diretor. Quando um filme é lançado já com a expectativa de que uma segunda versão também virá, fica aquela estranha sensação de que o espectador está sendo enganado e isso retira o mérito de ambas as versões e de todos os engravatados e mentes criativas por trás da estratégia.
Sei que quem está lendo a presente crítica quer saber de qual versão da Parte 1 eu gostei mais, mas para responder isso, eu preciso contextualizar rapidamente a questão, já que eu não fiz a crítica do filme original, que ficou ao encargo de meu colega Kevin Rick. Devo dizer que eu e ele normalmente estamos em sintonia sobre o que achamos de filmes e séries, mas, no caso de A Menina do Fogo, nossas diferenças são maiores do que o normal: enquanto ele conseguiu ver elementos positivos o suficiente para dar 1,5 HALs, eu não consegui ver nenhuma qualidade redentora ou pelo menos nada que de alguma maneira equilibrasse minimamente o turbilhão de problemas da obra que vão desde um elenco hilário de inane, passando por um design de produção genérico até a raiz do cabelo e chegando a um roteiro que, por mais que tente seguir a linha e, com boa vontade, até “homenagear” Os Sete Samurais, não consegue chegar próximo de arranhar a superfície de outras obras dos mais diversos gêneros que fizeram o mesmo, incluindo Sete Homens e um Destino, Os Doze Condenados, Mercenários das Galáxias, Krull, Samurai 7, Três Amigos! e Vida de Inseto. Portanto, minha avaliação seria, com facilidade, a de Lixo Atômico (essa aqui, para quem nunca viu: ).
Feita a contextualização, então posso afirmar que os nada menos do que 70 minutos(!!!) acrescentados ao filme por Zack Snyder em sua versão do diretor desta Parte 1 resultam em uma obra significativamente melhor, uma que nem de longe a faz ser boa ou mesmo meramente mediana, mas que sim, é mais fluida, mais lógica e bem menos claudicante que A Menina do Fogo, de fato “merecendo” a mudança cerimonial – e sem dúvida pretensiosa, mas fazer o que? – de título para Cálice de Sangue. O que antes era, para mim, um longa-metragem repugnante, tornou-se algo que finalmente se eleva para a categoria de ruindade cinematográfica, inegavelmente um upgrade que, para minha surpresa, tornou a conferência dessa segunda versão muito mais fácil e com muito menos olhadas no celular do que a primeira. Fica claro, aqui, que o Zack Snyder atual mantém resquícios do Zack Snyder de outrora, já que é possível enxergar pelo menos um plano “bem” elaborado para essa primeira metade de sua saga.
Mas não se enganem. O filme continua confuso, idiota, altamente imbecilizante, com personagens recortados em cartolina vividos por atores que vão do nível do inadvertidamente hilário (como são os casos de Sofia Boutella e suas mil variações de enfezamento facial e de Charlie Hunnam achando que está abafando com seu sotaque irlandês) até o do abissalmente incompetente (como Ed Skrein vivendo um vilão que faria Blofeld parecer Hannibal Lecter e Staz Nair na pele de um príncipe sarado que faz da atuação de Marc Singer, em O Príncipe Guerreiro, algo perfeitamente oscarizável) e com incuráveis problemas de roteiro que transformam a narrativa em uma mixórdia interminável de clichês mal executados e mal ajambrados que sugam a essência do espectador como os vampiros espaciais em Força Sinistra. E isso sem contar com os exageros estilísticos snyderianos, notadamente os filtros equivocados e suas câmeras lentas tão intrusivas que elas conseguem estragar sequências de pancadaria potencialmente boas. O rebatizado Cálice de Sangue, portanto, passa longe de curar os problemas de seu irmão raquítico A Menina do Fogo, mas pega um limão claramente podre e cheio de vermes e faz com ele uma limonada que não matará ninguém, mesmo que cause queimação e azia em todo o sistema digestivo (dane-se o digestório; eu aprendi como digestivo e assim continuará sendo para mim).
O que o corte do diretor melhora o original? Bem, para começo de conversa, o androide JC-1435, mais conhecido como Jimmy e, sem sombra de dúvida, o melhor personagem do filme, com direito à voz de Anthony Hopkins (sempre um deleite mesmo quando aceita fazer papeis duvidosos para pagar suas contas) e captura de performance de Dustin Ceithamer (não conheço, mas me parece melhor do que todo o restante do elenco mesmo que ele nunca realmente apareça no filme – ou talvez por isso mesmo), não é mais largado de lado em Veldt. Agora, ele tem um arco evolutivo e transformativo que chega até a ser bonito, como o renascimento de um nobre cavaleiro medieval de lenda à la Lancelot du Lac. Snyder consegue torná-lo relevante para além de sua função narrativa mínima dentro do corte do diretor, basicamente restrita ao que já estava presente na versão original. De maneira semelhante, apesar de o detalhamento das motivações do jovem Aris (Sky Yang) para trair seus colegas nazistas não sejam essenciais para entendermos o personagem, o prólogo em que vemos detalhadamente sua “origem”, por assim dizer, é uma boa forma de introduzir o que exatamente significa a opressão do império malvado, incluindo aquela bizarra cerimônia dos sacerdotes tarados por dentes. No mínimo é certamente uma maneira bem mais chamativa de se começar o filme.
Apesar de eu não achar que a violência pela violência seja algo necessário para qualquer história, aqui o aumento da sanguinolência digital – aquela bem mal feita, mas que é o padrão atual, infelizmente – encaixa-se bem na atmosfera pesada e sombria dos horrores causados pelos vilões. Aquela impressão de que Snyder estava deliberadamente “escondendo” o sangue na primeira versão do filme desaparece por completo aqui, o que já é uma vantagem imediata, beneficiando a naturalidade da história que está sendo contada. Não gosto muito do aumento dos flashbacks sobre a protagonista, pois eles pouco acrescentam à história geral e à dela em particular (o arco narrativo de Kora/Arthelais é paupérrimo, diga-se de passagem), ainda que haja um bom momento em que a surreal forma de navegação espacial das naves do império é revelada.
O que ficou evidente para mim, no final das contas, é que, no caminho inverso às várias séries que deveriam ser filmes, Rebel Moon deveria ser uma obra episódica. Mesmo considerando a pegada cansada de Snyder, o material trash e pulp que ele derrama na forma de dois longas-metragens faria mais sentido como uma série de no máximo duas temporadas, pois abriria espaço para uma construção mais orgânica de mitologia e um melhor aproveitamento dos personagens, mesmo que eles não ganhassem nada semelhante a desenvolvimento narrativo de qualidade. Quem sabe um dia, depois que Zack Snyder colocar seu ego, seu estresse pós-traumático e sua dor sob controle, o cineasta não revisita mais uma vez sua ópera espacial ou, melhor ainda, não consegue criar outra que reflita melhor sua capacidade técnica atrás das câmeras, talvez deixando o roteiro em mãos melhores? Do jeito que está, mesmo que o trabalho seja terapêutico para ele, é melhor ele tentar fazer outra coisa para desanuviar a cabeça, como por exemplo carpintaria ou pintura, pois insistir nessas atrocidades fílmicas é contribuir para o enterro cada vez mais profundo de sua uma vez promissora carreira em Hollywood. Não tem corte do diretor que salve isso.
Rebel Moon – Parte 1: Corte do Diretor (Cálice de Sangue) (Rebel Moon – Part One: Chalice of Blood – EUA, 02 de agosto de 2024)
Direção: Zack Snyder
Roteiro: Zack Snyder, Kurt Johnstad, Shay Hatten
Elenco: Sofia Boutella, Djimon Hounsou, Ed Skrein, Michiel Huisman, Bae Doona, Ray Fisher, Charlie Hunnam, Anthony Hopkins, Dustin Ceithamer, Staz Nair, Fra Fee, Cleopatra Coleman, Stuart Martin, Ingvar Sigurdsson, Alfonso Herrera, Cary Elwes, Rhian Rees, Elise Duffy, Jena Malone, Sky Yang, Charlotte Maggi, Corey Stoll, Stella Grace Fitzgerald, Greg Kriek, Brandon Auret, Ray Porter, Dominic Burgess, Tony Amendola, Derek Mears
Duração: 204 min.