Rebecca é um daqueles romances que está sempre em publicação, sendo, talvez, não só a obra mais conhecida da autora britânica Daphne du Maurier, como aquela que mais consistentemente gerou adaptações, a mais famosa delas sendo o filme homônimo de Alfred Hitchcock de 1940, em sua primeira produção americana e, também, a única a entregar o Oscar de Melhor Filme ao Mestre do Suspense, valendo-lhe, também, a primeira indicação a Melhor Diretor, prêmio que ele jamais levou apesar de suas quatro outras indicações em uma daquelas injustiças inexplicáveis da Academia. Mesmo acusada de plágio diversas vezes, inclusive em relação ao romance A Sucessora, que a autora brasileira Carolina Nabuco publicara quatro anos antes, a obra gótica sob análise é normalmente elevada ao panteão de seu gênero.
A autora usa a narração em primeira pessoa a partir do ponto de vista de uma jovem cujo nome nunca é mencionado e que se torna a segunda Senhora de Winter quando ela se casa com o viúvo Maxim de Winter após conhecê-lo em Monte Carlo. Escrever em primeira pessoa e fazer dessa pessoa o narrador único cria limitações naturais, pois nada que ela não testemunhe, experimente, suponha ou deduza pode ser inserido na narrativa, o que torna particularmente importante a forma como diálogos e pensamentos são trabalhados, ou seja, como a exteriorização e interiorização de parágrafos flui de um para o outro e vice-versa. Du Maurier acerta em cheio nesse aspecto, especialmente na maneira como ela desenvolve a personalidade da narradora “sem nome” de uma jovem inocente, humilde e até certo ponto deslumbrada para uma mulher tolhida, oprimida e quase levada à loucura pelo onipresente fantasma de Rebecca, a primeira Senhora de Winter, que metaforicamente habita Manderley, a gigantesca propriedade ancestral da família de Maxim, fantasma esse que ganha contornos físicos em razão da sinistra Srta. Danvers, governanta da mansão e absolutamente devotada à sua primeira patroa.
Mas essa estrutura rígida escolhida por Du Maurier cobra muito da história e esse preço é sentido especialmente no terço final. Se o início é imediatamente cativante, com a narradora abordando sua história de Cinderela em que se transforma de uma faz-tudo de uma insuportável ricaça americana à esposa de Maxim quase que em um piscar de olhos e a segunda parte da história mergulha em um fascinante mundo de extrema riqueza, mas também de mistérios, ciúmes, inveja, insegurança e tortura psicológica, na terceira, em que a resolução do whodunit sobre quem matou Rebecca – assunto que é literalmente trazido à tona quando o barco em que ela morreu é achado -, tudo se torna extremamente cansativo e verborrágico. Sem poder mudar o ponto de vista, a narradora, nessa parte da história, passar a conjecturar sobre o que realmente aconteceu com sua antecessora e a investigação que decorre daí é corrida, repleta de revelações convenientes talvez demais, mas certamente menos convenientes do que a inserção física da narradora em tudo o que ocorre por uma exigência da escolha estrutural de Du Maurier. Talvez o problema esteja na distribuição de tempo entre cada terço, ainda que diminuir os dois primeiros para beneficiar o terceiro talvez retirasse muito da qualidade do romance, algo que, curiosamente, é um problema refletido na adaptação audiovisual de 2020 do livro.
Por outro lado, Du Maurier é corajosa na escolha do assassino, pois, diferente da adaptação de Hitchcock, que alterou os acontecimentos para morte acidental, há efetivamente um assassino que atua de forma até premeditada, sob certo ponto de vista. Sem querer estragar a revelação a quem porventura não tenha lido o romance, basta dizer que a autora subverte expectativas de um whodunit e coroa – e até aplaude, diria – ações claramente condenáveis sob qualquer análise meritória minimamente decente. Sim, Rebecca não era flor que se cheirasse, mas daí a aceitar o que acaba acontecendo com ela quando tudo é revelado, são, como dizem por aí, outros quinhentos, o que abre uma fascinante discussão sobre moralidade, algo em que a autora não mergulha, preferindo deixar no ar para que o leitor decida.
Se Rebecca é ou não fruto de plágio – e um dia lerei o romance de Carolina Nabuco para tirar minhas próprias conclusões -, a grande verdade é que a obra é uma fascinante leitura de mistério e suspense que só perde o fôlego mesmo na forma como Du Maurier trabalha a resolução da morte da personagem titular. Mas, até chegar a esse ponto, a abordagem da perda da inocência da narradora sem nome e sua inserção em um mundo quase alienígena e muito ameaçador para ela é um deleite narrativo atemporal que merece mesmo ser destacado no gênero em que se insere.
Rebecca (Idem – Reino Unido, 1938)
Autoria: Daphne du Maurier
Editora original: Victor Gollancz Ltd.
Data original de publicação: 05 de agosto de 1938
Editora no Brasil: DarkSide Book
Data de publicação no Brasil: 14 de junho de 2023
Tradução: Regiane Winarski
Páginas: 449