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Crítica | Ray Donovan – O Filme

Quem é o lobo?

por Ritter Fan
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  • Há spoilers. Leiam, aqui, as críticas de todas as temporadas da série.

Depois de sete temporadas de qualidade impressionantemente alta, Ray Donovan foi cancelada pela Showtime sem, aparentemente, sequer um aviso prévio ao showrunner David Hollander ou a seu ator principal e produtor executivo Liev Schreiber, o que impediu uma finalização digna à longeva série. Os fãs reclamaram, Hollander e Schreiber mexeram os pauzinhos nos bastidores e quase que exatamente dois anos depois do encerramento brusco e completamente inesperado, eis que a série ganha um telefilme para amarrar todas as suas pontas sobre Ray e sua complicada família.

Ray Donovan – O Filme é, portanto, uma obra que tem esse claro e evidente objetivo, ou seja, dar cabo de uma saga que durou sete anos e que teve 82 episódios, pelo que ele foi feito exclusivamente para quem acompanhou todo esse caminho. Não é, consequentemente, um filme que se possa pegar para ver sem esse contexto todo. Além disso, considerando que a temporada que acabou sendo a última teve apenas 10 episódios, dois a menos do que as demais, ele vem para cirurgicamente suprir esse espaço com sua duração de 100 minutos, funcionado exatamente como a reunião do que poderiam ser os 11º e 12º capítulos da 7ª temporada. Isso pode parecer evidente, mas é importante reiterar esse aspecto, já que o telefilme mantém a mesmíssima estrutura introduzida na temporada final, ou seja, oscila entre o presente, com Ray tentando lidar com o conflito com a família Sullivan, e o passado, em que vemos os detalhes que levaram o protagonista a ser quem ele é.

Portanto, eventuais reclamações do tipo “tem muito flashback“, como sem querer esbarrei por aí, por incrível que pareça, simplesmente não fazem sentido, já que fica evidente que a ideia de Hollander era justamente fazer com que essas voltas ao passado que aos poucos funcionam como “a origem de Ray Donovan” e que durante seis anos só foram abordadas em comentários crípticos, dessem toda a base para o que a série é em seu âmago: uma jornada de autoconhecimento e expiações dos pecados do violento, torturado e depressivo Ray Donovan. Para fazer isso, o roteiro escrito pelo próprio showrunner ao lado de Schreiber faz uso de ainda outro muito bem inserido artifício narrativo, que é a conversão de toda a narrativa em um grande flashback (com os flashbacks para a juventude de Ray sendo flashbacks dentro de flashbacks, portanto) a partir de uma conversa telefônica em que um visivelmente abalado Ray (Schreiber), com mãos ensanguentadas, conversa com seu psiquiatra, o Dr. Arthur Amiot (Alan Alda novamente sensacional em sua ponta), levando a história a começar a partir do velório de Smitty, com Mickey em fuga com o dinheiro dos Sullivans.

Essa estrutura cria um bom mistério, para começo de conversa, ainda que só haja mesmo duas possibilidade ali, além de funcionar como um confessionário para Ray. Considerando seu passado profundamente religioso, mas também profundamente traumático em razão do que ele sofreu com o padre pedófilo de sua paróquia, emular a confissão católica com um terapeuta é, diria, uma jogada de mestre que consegue suavemente trabalhar dois dos mais importantes temas da série. Hollander e Schreiber mostram, com isso, que entendem como ninguém sobre esse grande personagem e, mesmo que a conversa/terapia/confissão seja usada usada de maneira econômica, é ela que dá todo o sabor ao longa-metragem, tornando-o realmente especial e levando ao preciso final que a série merecia.

É perfeitamente possível argumentar, porém, que os flashbacks para a juventude de Ray Donovan não precisavam chegar ao ponto em que chegam, ou seja, mostrar os detalhes do como e do porquê ele ter se tornado um fixer – ou “resolvedor de problemas” – para o poderoso advogado de Hollywood Ezra Goldman (originalmente vivido por Elliott Gould e, no longa, quando mais jovem, por Danny Deferrari). No entanto, tenho para mim que essa argumentação vai por água abaixo no momento em que o roteiro deixa evidente que não há gratuidade nenhuma nessa escolha, que não estamos vendo Ray tornar-se fiel a Ezra apenas como um afago aos fãs da série, mas sim como parte fundamental de sua história pregressa que se comunica diretamente com suas ações no presente, especialmente no que se refere a seu pai. Em determinada altura do longa, Ray diz que Abby abriu as portas para o “lobo” em Calabasas, onde eles moravam, na Califórnia, ao que o Dr. Amiot pergunta “quem é o lobo”, dando o tom para as reflexões.

Além disso, o elenco jovem escolhido para os flashbacks é tão espetacular quanto o maduro. Bill Heck retorna como Mick e tem um excelente espaço para incorporar Jon Voight em seus trejeitos e maneira de falar e o recém-escalado Chris Gray como Ray é um assombro completo em conseguir literalmente se transformar em Liev Schreiber, seja na forma como olha sério, mas de forma analítica, sempre febrilmente pensando no que fazer, mas sem demonstrar, para as mais diversas situações, seja como ele emula as expressões transformadas em clássicas por Schreiber como seu “sure“. Só de haver mais de Heck e sermos presenteados com a escolha de Gray, já torna os flashbacks valiosíssimos, mas eles vão além e nos brindam com um panorama completo da tragédia dos Donovan que, ao mesmo tempo em que relativiza Mick, certamente um babaca, mas também certamente um pai amoroso (a sequência “brega” do pequenino Ray pulando na piscina é didática, mas linda nesse sentido), acaba revelando que o verdadeiro lobo é mesmo Ray, igualmente um pai protetor, mas um filho que jogou o pai por duas décadas na prisão por um crime que ele não cometeu.

Se Mick e Ray têm finais definitivos, o mesmo não pode ser dito dos demais Donovans. Mas não afirmo isso de maneira negativa, pois, a não ser que o objetivo fosse matar todo mundo, dar encerramentos precisos e definidos para cada um dos demais – Terry (Eddie Marsan), Bunchy (Dash Mihok), Daryll (Pooch Hall) e Bridget (Kerris Dorsey) – seria trair o espírito da série que, no final das contas, lida com vidas e seus destinos nunca são como cartas marcadas como bem sabemos. É bem verdade que esses personagens ganham tempo de tela diminuto no longa, mas não havia espaço para tudo no tempo alocado e achei um pequeno milagre Hollander conseguir costurá-los tão eficientemente à trama macro e ainda entregar direções possíveis para cada um deles. Foi emocionante ver Terry, bem doente com seu Mal de Parkinson, vivendo uma ilusão final de família unida no apartamento de Ray, ao passo que foi lindo ver Bunchy não só mais uma vez tentar ajudar o irmão em Boston, como ter uma chance de reatar sua vida de casado com Teresa (Alyssa Diaz retornando em uma ponta), possivelmente levando a traumatizada Bridget junto. No caso de Daryll, a opção foi pelo pragmatismo. Ele precisava fugir e é isso que o telefilme faz para ele.

Fico muito feliz que David Hollander tenha feito de Ray Donovan – O Filme exatamente o que ele precisava ser diante das circunstâncias: os dois últimos episódios da 7ª temporada da série. Talvez ele tenha tido que correr para fechar tudo no tempo que tinha, mas é exatamente por conseguir fazer tudo o que ele precisava fazer para nos entregar a despedida mais do que digna que a família Donovan merecia, é que o showrunner merece todos os nosso cumprimentos. Foi uma baita jornada de rara qualidade e seu final ficou à altura.

Ray Donovan – O Filme (Ray Donovan: The Movie – EUA, 14 de janeiro de 2022)
Direção: David Hollander
Roteiro: David Hollander, Liev Schreiber (com base em criação de Ann Biderman)
Elenco: Liev Schreiber, Jon Voight, Eddie Marsan, Dash Mihok, Pooch Hall, Kerris Dorsey, Alan Alda, Katherine Moennig, Kerry Condon, Bill Heck, Josh Hamilton, Graham Rogers, Alyssa Diaz, David Patrick Kelly, Austin Hébert, Chris Gray, AJ Michalka, Chris Petrovski, Danny Deferrari, Andrew Rothenberg
Duração: 100 min.

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