- Há spoilers. Leiam, aqui, as críticas dos demais episódios.
Como Mãe ao final de Feeding, entre minha crítica de The Tree e esta agora, tive que me reprogramar para internalizar algo que um leitor mencionou nos comentários anteriores: a segunda temporada de Raised by Wolves seria encurtada, com apenas oito episódios. Estava o tempo todo achando que seria como na primeira temporada, com 10 episódios, o que abria espaço para um pletora de desenvolvimentos em minha cabeça; mas, agora, com essa nova verdade, como que em um estalo, este capítulo que agora comento foi transformado em penúltimo do ano. O lado positivo é que não há espaço para enrolações, ainda que Aaron Guzikowski não se valha muito deste expediente, mas o negativo é que também não há espaço para desvendamentos de mistérios.
Com minha reprogramação mental devidamente feita, e depois de assistir a Feeding, devo dizer que entre frutos – e a árvore que deu os frutos que, antes, era Sue! – engolidos pela serpente que, ato contínuo, se torna uma arma e a caçada ao bebê de Tempest com ajuda de uma Vrill muito apropriadamente trajada de Jason Voorhees, não consegui tirar de meu rosto um sorriso de admiração por essa série por um segundo sequer. Estamos tendo o privilégio de ver, basicamente, a versão sci-fi e completamente original e fascinante – e um pouco lisérgica, devo admitir – do Livro de Gênesis com pitadas de Mitologia Nórdica (impossível não ver Yggdrasil e Jörmungandr em meio a isso tudo) em um futuro distante que conversa com o também distante passado que poderia muito bem ter saído de mentes como as de Arthur C. Clarke e Isaac Asimov, com a sensibilidade estética de H.R. Giger e Salvador Dalí e a visão de mundo de Alejandro Jodorowsky e David Cronenberg.
E o mais interessante é que o showrunner, com esse festival do que em uma primeira análise rasa e com profunda má-vontade pode ser interpretado como uma confusão dos diabos, na verdade é um caos com ordem ou com um semblante de ordem. Para todos os efeitos, Kepler 22-b é como um tubo de ensaio para a vida na Terra, mesmo que a linha temporal, depois do diálogo de Mãe com Avó, que menciona centenas e não milhares – talvez milhões – de anos, ainda não seja algo que possamos bater o martelo. Não sabemos bem que veio antes, os humanos da Terra ou os humanoides do planeta distante e como uma espécie alimentou a outra ou criou a outra, mas começa a ser perceptível essa conexão que, claro, carrega as conotações mitológicas das mais diversas religiões que convergem para a mitraica dos poucos que ainda são dela, claro.
Como todas as peças móveis serão encaixadas, creio estarmos longe de saber e desconfio que elas sequer serão tão encaixadas assim, pois manter um lado místico – no sentido de não cientificamente explicado – é algo salutar tanto para a série, quanto para o espectador, que precisará tirar suas próprias conclusões sem receber tudo de bandeja. Se os humanos parecem peões em um jogo fundamentalmente cibernético (notem como são os ateístas que vemos entrega o controle de suas vidas às máquinas, mas que as máquinas em si – as de tecnologia mais avançada, pelo menos – são criadas pelo mitraicos), é porque eles realmente são. Aqui, Mãe e sua intenção em se reprogramar para destruir a serpente biotecnológica que saiu de seu ventre(???) e Avó encarregando-se, ao que tudo indica, de ajudá-la em seu objetivo, assim como Pai claramente tendo dúvida pessoais como qualquer humano, Vrill tentando provar-se como um membro valioso da família e até o androide sem cabeça de Hunter reagindo ao desdém de Pai, são elementos e artifícios muito mais importantes do que as próprias motivações dos humanos que gravitam ao seu redor.
É como uma hierarquia de atenções que Guzikowski constrói sempre enfatizando o lado dos androides e deixando os humanos razoavelmente de lado, sem funções claras dentro de toda essa estrutura. Se Campion é o futuro líder dos humanos, ele só é isso para nós porque Mãe assim disse. As demais crianças são as literais filhas da mãe, mesmo que elas por vezes se rebelem, porém sempre retornando ao seio de seu lar e mesmo que todas menos Campion tenham tido seus pais biológicos chacinados por Mãe. Só mesmo Marcus – e, por tabela, Paul – saem dessa predeterminação cibernética, sob o conceito de que eles são profetas ou messias. Mas mesmo eles ou pelo menos Marcus, agora, demonstram ter dúvidas sobre suas funções, duvidando de Sol ou compreendendo finalmente que talvez o deus que eles tanto adorem não seja benevolente como imaginam. A fé está em jogo aqui. A fé em seres artificiais e a fé em seres mitológicos, todos eles, ironicamente, criados pelos humanos que ficam em segundo plano.
Raised by Wolves caminha misteriosamente para o final de sua segunda temporada, mas, por outro lado, cada vez mais próxima de nos apresentar a um cenário que racionalize pelo menos parte do testemunhamos até o momento. Será que se Mãe acabar com a serpente ela garantirá a continuidade do Paraíso para os humanos remanescentes? Ou será que é necessário sucumbir à tentação para garantir a sobrevivência daqueles que ela foi originalmente programada para proteger? Se ela é Deusa e Eva, quem seria Avó?
Raised by Wolves – 2X07: Feeding (EUA, 10 de março de 2022)
Criação: Aaron Guzikowski
Direção: Lukas Ettlin
Roteiro: Aaron Guzikowski
Elenco: Amanda Collin, Abubakar Salim, Niamh Algar, Travis Fimmel, Jordan Loughran, Felix Jamieson, Ethan Hazzard, Aasiya Shah, Ivy Wong, Peter Christoffersen, Selina Jones, Morgan Santo, James Harkness, Kim Engelbrecht, Jennifer Saayeng
Duração: 49 min.