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Crítica | Rainha Cleópatra (2023)

Conseguiram deixar Cleópatra desinteressante.

por Luiz Santiago
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De todas as pessoas que eu imaginaria produzindo um documentário sobre Cleópatra, Jada Pinkett Smith não seria uma delas. Por isso, foi muito espantoso para mim quando a Netflix anunciou que lançaria um docudrama baseado na vida da última Faraó do Egito, tendo a Sra. Smith como produtora e narradora. Dividida em quatro capítulos (Rivals, When in Rome, What Must Be Done e The Last Pharaoh), a série procura fazer uma linha do tempo da vida de Cleópatra VII Filopátor (pois é, ele não foi, nem de perto, a única Cleópatra do Egito), que reinou entre os anos 51 e 30 Antes da Era Comum (AEC). Até aí, nada de novo sob o Sol. Docudramas, dramas e documentários sobre figuras históricas são feitos constantemente, e sempre com muita coisa a ser questionada a respeito. No caso deste aqui, o problema começou antes mesmo de a série estrear, e acabou sendo a sua principal mola de divulgação: a escalação de Adele James, uma atriz negra, para viver a protagonista do show.

O trabalho de Adele James, visto apenas por sua capacidade dramatúrgica, é uma das poucas coisas que conseguimos classificar como positivas em Queen Cleopatra. Ao lado do ator Craig Russell, que vive Marco Antônio, temos os dois únicos nomes do elenco que realmente merecem destaque, e que em termos de arco de personagens, na parte dramática, conseguem ao menos algumas cenas realmente interessantes e visualmente muito bonitas. Mas nada disso foi ressaltado massivamente por espectadores e/ou detratores da série. A presença de uma atriz negra vivendo Cleópatra foi o centro do debate, e entre antropólogos temporários, historiadores-relâmpago e pessoas que realmente entendem do tema, a polêmica dominou as redes sociais e até o campo das relações jurídicas, já que um homem chamado Mahmoud al-Semary, advogado egípcio, resolveu processar a Netflix logo após a divulgação do trailer da série, segundo informações amplamente divulgadas de um site chamado Egypt Independent.

Comecemos, então, tirando o elefante da sala. Cleópatra era filha de Ptolomeu XII Auleta/Auletes, faraó macedônico do Egito entre os anos 80 e 51 AEC. Os Macedônios eram pessoas brancas, vindos geograficamente de uma região da Europa que hoje compreende, mais ou menos, territórios da Grécia (parte norte), Bulgária (parte sul) e um pouco de Macedônia e Albânia. Na linhagem de Cleópatra também haviam persas (atual território do Irã) e sírios, que entraram na família a partir de Cleópatra I Sira (215 – 176 AEC). Pelo fato de a dinastia ptolomaica, da qual Cleópatra fazia parte, manter um número enorme de casamentos na própria família, é muitíssimo razoável assumir que Cleópatra era uma mulher branca. Nada perto de Elizabeth Taylor e tampouco do tipo “loirinha dos olhos claros”, mas uma mulher branca com traços fortemente macedônicos/gregos e algo de sírio/persa. 

Os defensores de que Cleópatra tenha sido uma mulher negra, baseiam-se em dois pontos cegos na árvore genealógica da Faraó: sua avó paterna (que é completamente desconhecida) e a sua mãe (que supõe-se ter sido Cleópatra V, mas a falta de documentos não nos permite afirmar com certeza). Nessas duas situações, há a possibilidade de estarmos falando de mulheres negras (mais precisamente núbias, ou seja, do território do atual Sudão), e o fato de não haver documentos sobre elas alimenta a ideia de que eram negras. Essa ideia faz algum sentido? Sim, faz. É historicamente provável? De certa forma, sim. Mas na minha opinião e na opinião da maioria dos historiadores, a probabilidade é bem baixa. Os faraós negros do Egito (núbios/cuxitas) foram da 25ª dinastia, muito tempo antes de Cleópatra. Em termos de população nacional, ali no primeiro século Antes da Era Comum, boa parte da população já era bastante miscigenada e pouco retinta, sem contar que havia uma grande quantidade de colonizadores macedônios no norte país. Portanto, embora não seja algo absolutamente fantasioso, os indícios históricos que temos apontam para uma enorme improbabilidade de Cleópatra VII ter sido uma mulher negra.

Os entrevistados abordam essa questão étnica de maneira rápida (o que é bom), ancorando-se nos pontos cegos da árvore genealógica da Faraó, como expliquei acima. É o tipo de abordagem “Revista Caras”, com pouco rigor histórico e temático, o que não ajuda muito a série, para ser sincero. À parte esse aspecto, a diretora Tina Gharavi tenta capturar a fascinante Era do reinado de Cleópatra, tentando criar uma jornada palatável na mistura de gêneros, mas isso realmente não é possível, por uma porção de motivos. O primeiro deles é a mudança de tom na série a partir do segundo episódio. Enquanto o primeiro tinha o compromisso de mostrar um pouco mais do Egito e expandir as informações sobre Cleópatra e seus irmãos, os três capítulos seguintes basicamente entregam os melhores momentos a Roma. Em adição a isso, Cleópatra é pouco a pouco colocada numa posição de “rainha que precisa ser salva por um machão romano”, e mesmo que a narração e os entrevistados condenem o traço machista com que a História europeia registrou e divulgou a Faraó, a série acaba caindo exatamente no mesmo problema que critica.

Os roteiros de Peres Owino são insossos e não trazem diálogos ou elementos dramatizados que engrandeçam a trama, tanto que os cliffhangers são dados pela fala de um especialista. Eu faço parte do time que não gosta da mistura entre ficção e documentário, mas dependendo de como o texto é escrito e de como é dirigido, é possível aproveitar pelo menos uma parte do produto, o que não acontece aqui. A quantidade de acertos da série é pequena, e está fracionada em áreas que sequer são mantidas com o mesmo nível por toda a temporada, como a direção de fotografia e a trilha sonora, por exemplo. O enredo carece de profundidade, tanto para explorar os personagens (Otávio, interpretado por James Marlowe, é quem mais sofre nesse aspecto), quanto para discutir eventos históricos. Não há, ainda bem, nenhum erro crasso de representação factual aqui (à parte a ~polêmica~ étnica), mas a partir da relação de Cleópatra com Júlio César (John Partridge) e Marco Antônio, a série parece abandonar o pouco de seriedade que o texto trazia, tornando-se uma luxuosa e não-cristã “novela da Record”.

As transições entre reconstituições históricas e comentários acadêmicos são muitas vezes abruptas e incoerentes, não deixando nenhum dos lados concluir algo possivelmente bom que deveriam demonstrar. A edição irresponsável dilui o impacto de ambos os formatos, deixando o público com uma sensação de desapego e descompromisso diante do que vê. O ritmo lento também não ajuda, e muitas vezes parece que não chega a lugar nenhum. Os efeitos são uma decepção constante, com cenas de ligação entre os atos que nos lembram “vídeos de 2006 do youtube” e que irritam profundamente, demonstrando também o senso questionável de visão artística dos produtores e da diretora. Parte das reconstruções funcionam, como figurinos, maquiagem e algumas exposições de cenários (especialmente em Roma), mas essas realizações não compensam as falhas fundamentais na narrativa e no desenvolvimento do show.

Rainha Cleópatra está muito abaixo de suas elevadas ambições. A série falha em entregar algo que prenda o espectador sem passar raiva, luta com sua representação da herança de Cleópatra e sofre com a falta de foco e direção dramática. Se fosse um projeto só para discutir a etnia da última Faraó Egito, com cuidadosa pesquisa histórica e sem vergonhosos momentos de dramatização, talvez o resultado fosse muito melhor e atendesse ao que parece ser a grande intenção da produção, que é discutir a parte étnica. Para aqueles que procuravam ou esperavam um retrato mais envolvente e preciso de Cleópatra e seu reinado, este aqui prova ser uma decepção a cada conjunto de cenas. Uma chatice faraônica. 

Rainha Cleópatra (Queen Cleopatra) — Reino Unido, 2023
Showrunner: Jada Pinkett Smith, Ben Goold
Direção: Tina Gharavi
Roteiro: Peres Owino
Elenco: Jada Pinkett Smith, Adele James, Craig Russell, John Partridge, Andira Crichlow, Kaysha Woollery, Laya Lewis, Calum Balmforth, Louis Emerick, Philip Walker, Michael Greco, Greg Lockett, James Marlowe, Simon Kunz, James O’Driscoll, Shelley Haley, Debora Heard, Islam Issa, Colleen Darnell, Sally-Ann Ashton, Jacquelyn Williamson
Duração: 4 episódios com c. de 50 min.

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