Home FilmesCríticas Crítica | Quente de Dia, Frio à Noite

Crítica | Quente de Dia, Frio à Noite

A letargia e impossibilidade de sair de um looping.

por Michel Gutwilen
521 views

A esta altura, não há dúvidas de que foi surgindo um maior espaço no cinema contemporâneo da última década para escancarar as mais diversas crises na classe-média, sejam elas morais ou de costumes, mas principalmente sobre a perda de seu poder aquisitivo no atual contexto econômico, como muito se viu em obras da cena brasileira. Inclusive, quem vê o protagonista do filme sul-coreano Quente de Dia, Frio à Noite sair para uma entrevista de emprego oferecida por um amigo e na verdade descobrir que foi conduzido para uma reunião de um esquema de pirâmide (“marketing multi-mídia“), pode até se achar que se está diante de um malandro carioca, assim como a Seoul nublada e cinzenta é tão igual a qualquer outra metrópole como São Paulo ou Curitiba. 

Com este tema já tendo sido confrontado de tantas formas, a ponto de criar uma predisposição ao cansaço antes mesmo do filme começar, pode-se dizer que o filme do diretor Park Song-yeol (que também faz o protagonista, vivendo o casal com a também co-produtora e co-roteirista) consegue se particularizar por criar um sentimento muito específico ligado a essa impotência, que está entranhado em toda a estrutura de sua narrativa. Portanto, Quente de Dia, Frio à Noite é um grande exercício de letargia, de observar dois corpos que não conseguem sair da inércia, que cada vez mais parecem anestesiados com a ideia de fracasso, que não possuem mais forças de reação diante de nada, duas figuras que entram em uma espiral cada vez mais difícil de sair. 

Este anestesiamento encontra seu principal eco no método das atuações, através do deadpan, mas também na escolha por uma decupagem formalista, cuja imobilidade dos planos soa como uma extensão formal do derrotismo pessimista dos personagens, sem passar nenhuma injeção de vida ao filme. Colocados em sequência, eles parecem pertencer a um tempo morto subjetivo, com a vida passando diante dos olhos dos personagens, ao passo que eles estão congelados. Uma outra opção formal interessante se revela na decupagem das cenas em que os personagens estão pela cidade, em que fazem longas caminhadas, quase que perdidos em um não-espaço, tal qual no caso do amigo do esquema de pirâmide que leva o protagonista ao máximo da enrolação, só que também quando a sua mulher vai pegar o empréstimo e o tempo se dilata nesta situação de que a hora e o destino não chegam.   

Aprofundando na questão do  deadpan — ou seja, na não-expressividade, na ausência de reação facial, que encontra seu maior representante na comédia em Buster Keaton e no drama com os personagens de Robert Bresson —, seu uso em Quente de Dia, Frio à Noite gera uma aproximação muito ambígua de gêneros, que possuem o rosto como força centrípeta do que vai acontecendo pelo filme. Há uma sensação de estranheza em acompanhar as subsequentes tragédias pessoais que vão sendo jogadas pela trama e não achar qualquer resposta emocional dos protagonistas, que porrada atrás de porrada continuam aceitando tudo que acontece com eles. Se é evidente que o capitalismo leva o ser humano a situações completamente absurdas, mas acabam sendo naturalizadas e incorporadas, o filme consegue transportá-las novamente para um lugar marciano, o que também o aproxima do humor quase que na base do riso nervoso. 

Com isso, pela ausência de grandes falas, o silêncio também ganha papel fundamental em mediar um terreno estranho de isolamento. Com os dois fracassando dentro de seus respectivos objetivos, é sempre curioso acompanhar a reação silenciosa de um ao descobrir o que houve com outro lado, parecendo que os próprios personagens segurassem as palavras, sem forças de discutir. Dentro da lógica individualista do capitalismo, acompanha-se no filme como até o casal vai cada vez menos interagindo entre si, o que culmina progressivamente em uma via literal na qual eles param de contracenar, por passarem a viver em horários diferentes por conta de seus empregos. No mesmo sentido, as próprias cenas no exterior da cidade adquirem o mesmo status de solidão, vazias de qualquer figurante ou ser vivo, fazendo com que o mundo não existisse mais dentro da ideia de coletivo. Essa opção curiosamente age numa ideia de trabalhar a individualidade no capitalismo, de que aqueles dois estão sozinhos em sua jornada, o que também fica perceptível pela incomunicabilidade a partir das chamadas não atendidas que os personagens tentam ao longo do filme. Quando tudo está ruim e a maré contra você, as únicas pessoas que parecem existir na vida são aquelas que estão contra você. 

Não só ficando no aspecto do estranhamento, mas o uso da vergonha também é a chave neste jogo de rostos, a partir da criação de situações que fazem com que o próprio espectador se bote no lugar do personagem por empatia. Na cena em que todos os filhos entregam uma carta com dinheiro no aniversário da mãe e acompanhamos o protagonista, sabendo que não vai entregá-la, em absoluta passividade, o centro de atenção do plano, ainda que amplo e abarque todos, acaba sendo por sentir o constrangimento que passa por ele. O mesmo pode ser dito quando a mulher do personagem é exposta pelos agiotas na frente de sua mãe, claramente constrangida, mas mantendo seu rosto imóvel.

Em um outro sentido, Quente de Dia, Frio à Noite ́também é repleto de caminhos facilitadores, que podem ser até formais (a cena do casal brigado cruzando o plano em diferentes direções ou sequência de cena em que a protagonista dorme, mas vemos seus objetos mudarem de posição) ou narrativas (como é a escolha do casal de protagonistas acabarem como motorista de aplicativo e entregadora de delivery, grandes símbolos contemporâneos do capitalismo terceirizado). O próprio universo fílmico também se fecha em um mundo hermético sem saída, até havendo um flerte com uma falsa ruptura a partir de uma reatividade do marido (que grita contra um atendente do aplicativo de corridas e depois enfrenta seu amigo), mas é como se o filme desse a volta de 360º em um ciclo que não leva a modificações em seu protagonista, deixando em manutenção a ideia da impotência e fraqueza, que culmina no ato de desistência no clímax. De tal forma, me questiono sobre até que ponto o retrato dos personagens não acaba por criar uma ambiguidade indesejada entre eles serem vítimas de um retrato financeiramente depressivo externo a eles, mas se certos acontecimentos também fazem com que eles pareçam individualmente pessoas até bobas, transferindo a culpabilidade ao indivíduo. Afinal, todo dia um malandro e um otário saem de casa.  

Quente de dia, frio à noite (Najeneun Deopgo Bameneun Chupo, 2021) — Coréia do Sul
Direção: Park Song-yeol
Roteiro: Park Song-yeol, Won Hyang-ra
Elenco: Park Song-yeol, Won Hyang-ra, Seo Chul, Hyo-jin Kim, Tae-Ri Lee, Son Min-hui, Shin Won-woo
Duração: 90 mins

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais