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Crítica | Quase Deuses

Uma jornada rumo ao conhecimento científico.

por Leonardo Campos
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Uma jornada pelos caminhos do conhecimento. Eis uma definição possível para Quase Deuses, telefilme dirigido por Joseph Sargent, cineasta que se baseia no roteiro de Robert Caswell e Peter Silverman para nos contar uma edificante história de superação lançada em 2004, uma saga de dedicação e empreendedorismo que atualmente é bastante mencionada em aulas de projeto de vida, cursos de metodologia da pesquisa, dentre outras áreas da aprendizagem humana. Tocante, sem apelar para um tom novelesco excessivo, algo comum na seara das produções cinematográficas para televisão, a narrativa traz para a cena os impasses de personagens mergulhados no interesse crítico para buscar explicações para as investigações científicas que empreendem, tendo o campo da medicina como espaço de desenvolvimento dos conflitos dramáticos internos, isto é, situados num caso específico de análise, bem como os externos, conectados com os desafios pessoais na vida destas figuras ficcionais com vidas atribuladas e cheias de obstáculos, mas focadas em encontrar as soluções que escreveriam os seus nomes para a eternidade, haja vista a inspiração numa história real para a concepção do filme.

Ao longo dos 110 minutos de Quase Deuses, nos deparamos com o cotidiano de Vivien Thomas (Yassin Bey) e Alfred Blalock (Alan Rickman), o primeiro, um homem negro, pobre, desacreditado diante da possibilidade de saída do determinismo que o sufoca, sendo o segundo, um médico renomado da Universidade de Vanderbilt, em Nashville, ambos situados na década de 1940, uma era de conflitos bélicos mundiais e muitas mudanças de paradigmas sociais.  A relação deles começa depois que Vivien consegue uma vaga de faxineiro na universidade. Curioso, ele sempre executa os seus serviços observando como as coisas funcionam ao redor, numa postura de pesquisador. O rapaz não quer apenas limpar e receber o seu salário no final do período, mas conhecer como se desdobram os processos por onde passa. Ele tem faro de investigador, posicionamento inicial que o fará ir tão longe, mais que o esperado, tornando-se um renomado cientista e médico, ganhador do Honoris Causa, em 1976. Acompanhamos cada passo seu com a trilha sonora emotiva de Christopher Young, importante para o impacto dramático de cada passagem transformadora na vida destes personagens que aprendem muito entre si.

Voltemos ao contato entre a dupla. Ao perceber que Vivien Thomas é um homem interessado e curioso, o Dr. Alfred começa a lhe garantir algumas oportunidades adicionais. Há momentos de observação de experimentos, contemplação de procedimentos, numa jornada que permite ao faxineiro sair da posição fixa importante, mas redutora, levando-o como auxiliar para o Hospital John Hopkins, numa época em que se relacionar com pessoas negras era tabu, tempo conflituoso que exigir ceder o lugar para os brancos num transporte público ou ter banheiros diferentes para cada grupo, em linhas gerais, uma tenebrosa fase da história humana que de vez em quando, se repete na contemporaneidade, por mais que afirmemos que passamos por consideráveis mudanças sociais. A esposa de Vivien, sempre preocupada, teme que as experiências do marido sejam ousadas demais e os deixem numa posição comprometedora futuramente. Ele, persistente, segue o seu sonho e consegue convencer a todos de sua competência, num trunfo belíssimo.

Sua trajetória é de superação sem aderir aos milagres ou religiosidade. Vivien Thomas é técnico no que faz, focado na metodologia, humilde quando os caminhos não levam para o esperado e consciente da necessidade de recomeçar quando percebe que realizou uma escolha equivocada. Em sua pesquisa com animais, faz procedimentos e experimenta muito, antes de chegar aos resultados finais, uma aula para a juventude contemporânea impaciente e obcecada pelo Google como via exclusiva para as suas respostas. É na exatidão científica que o personagem prospera, numa era de tantas dispersões e dificuldades como qualquer outra, marcada pela recessão econômica, desdobramento da Crise de 1929, época de taxas altíssimas de desemprego e miséria, queda do poder de compra e da renda, bem como da produção industrial em escala mundial. Sem falar na já mencionada segregação racial, um impasse que poderia ter acabado de vez com os primeiros passos galgados por Vivien Thomas , ao lado do Dr. Alfred, seu mentor, figuras unificadas para a resolução da Síndrome do Bebê Azul, um problema cardiológico que foi resolvido depois de muito trabalho, leitura, investigação e testes laboratoriais, em suma, após uma jornada exaustiva, mas necessária, de pesquisa embasada por métodos sérios.

Eles precisam descobrir como resolver a cianose provocada pela deficiência no transporte de oxigênio no sangue do bebê que desenvolve o problema quando nasce, nalguns casos, logo quando pequeno, uma condição que o deixa com a pela azulada ou arroxeada, cor que pode ser efeito da junção de sangue oxigenado com o não oxigenado, problema de saúde oriundo de má formação congênita. É uma situação raríssima que encontrou respostas significativas na empreitada do médico e de seu auxiliar. Nós contemplamos estas passagens com a direção de fotografia de Donald M. Morgan, eficiente na captação dos momentos de duelo entre os investigadores e a sociedade, personagens que atravessem os cenários do design de produção de Vincent Peranio, também assertivo ao emular com cautela as décadas por onde a trama se passa, além de construir um espaço de trabalho para a dupla que é simples, mas imersivo no que tange aos aspectos visuais de um local para experimentos científicos. Ademais, Quase Deuses também é uma narrativa para reflexão sobre os diversos tipos de conhecimento, sabia?

Nos momentos em que os dois homens debatem sobre como descobrir a cura para a cura do bebê e assim, explicar tal fenômeno, nós temos pontos de articulação com o conhecimento filosófico, obtido na lógica e na construção de conceitos. Após numerosas tentativas com animais que não dão certo, os testes acabam levando Vivien para o seu objetivo, num diálogo com o que chamamos de conhecimento sensível, aquele obtido através dos sentidos, neste caso, pelo olhar atento do personagem. Quando um representante religioso deseja intervir na cirurgia, alegando que os médicos querem interceder diante da vontade divina, temos impregnado o conhecimento religioso. No caso do conhecimento científico, podemos contemplar a sua passagem em diversos momentos de Quase Deuses, em especial, quando Vivien Thomas se apaixona pelos estudos na área de medicina e começa a devorar todos os livros possíveis sobre o assunto, numa busca por problemas, hipóteses, respostas por meio de experimentos e investigação.

Quase Deuses (Something the Lord Made) — Estados Unidos, 2004
Direção: Joseph Sargent
Roteiro: Bobby Robert Caswell, Peter Silverman
Elenco: Mos Def, Alan Rickman, Gabrielle Union, Mary Stuart Masterson, Kyra Sedgwick, Merritt Wever
Duração: 110 min

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