- Confira aqui a crítica de Luiz Santiago sobre este mesmo filme.
O segundo filme de Hitchcock feito para o produtor David O. Selznick foi marcado por discussões entre os dois – tanto que o filme seguinte de Hitch, Interlúdio, acabou sendo vendido para a RKO e produzido pelo próprio diretor – mas também entrou para a história do cinema por características bastante peculiares.
A história oficial e as várias lendas que cercam o filme dizem que a ideia que impulsionou a realização do filme foram as bem-sucedidas sessões de psicanálise a que o produtor Selznick teria se submetido, tanto que sua terapeuta participou do filme como conselheira técnica – crédito incluído na produção. A psicanálise era ainda algo novo, mas despertava a curiosidade apaixonada de muitos. Isto explica que o filme se inicie com créditos bem didáticos, explicando que o filme pretende acima de tudo enaltecer as virtudes da psicanálise como forma de cura para as doenças mentais e em recuperar a razão a pacientes perturbados. Daí vem seu título original – Spellbound – que pode ser traduzido como confuso, desorientado, o que torna o título brasileiro ainda mais injustificável.
Há um romance entre a Dra. Constance (Bergman) e o personagem de Gregory Peck – que de início se faz passar pelo Dr. Edwardes – que passa a ser seu paciente por quem ela se apaixona, mas embora este preâmbulo amoroso ocupe uma boa parte da história, o filme deixa bem claro que está mais interessado em povoar um filme de mistério com as ideias trazidas pela moderna ciência da psicanálise. Este talvez seja o maior problema do filme. Em seu temor de não ser plenamente compreendido pelo público, o roteirista e produtor rechearam as cenas de diálogos bastante didáticos sobre a psicanálise, mas tornando tudo muito simplório e hoje bastante risível. Há uma verborragia nada verossímil por parte dos médicos da clínica e mesmo nos diálogos entre Bergman e Peck, querendo a tudo enquadrar e citar em termos, teorias e síndromes identificadas pela psiquiatria, tornando muitas cenas tediosas – onde complexo de culpa e síndrome disso e daquilo surgem a todo instante, para explicar comportamentos de uma forma bastante rasa e simplista.
Talvez o maior achado do filme, e ideia de Hitchcock – mal utilizada pela interferência do produtor Selznick, resultando daí as brigas que se seguiram entre os dois – tenha sido contratar o pintor Salvador Dali para conceber visualmente uma sequencia de sonho do filme. As cenas acabaram gerando material para mais de 20 minutos, que sob a censura de Selznick resultaram na versão final do filme em pouco mais de 2 minutos. Mas mesmo sua pequena duração tornaram a cena o ponto-chave do filme e fruto de toda sua fama e publicidade. O brilhantismo desta cena de sonho, que guarda muitas semelhanças com a fase do expressionismo do cinema alemão, contrasta com o roteiro um pouco arrastado e que parece ter dificuldade em se solucionar, resultando num final bastante abrupto e pouco convincente em sua construção.
É verdade que há outras ideias bem solucionadas visualmente, além do sonho de Dali, e que são mérito próprio de Hitchcock, sobreviventes da ingerência de Selznick. Uma delas é a que acompanha numa montagem de planos rápidos a prisão e julgamento de John Ballantyne (Peck) como principal suspeito pela morte do Dr. Edwardes. Esta sequencia nos poupa das frequentes e comuns “cenas de julgamento” que os americanos tanto apreciam. Esta agilidade fílmica, no entanto, é pontual, infelizmente, num filme que é demasiadamente dialogado. Mas é a excelência na direção de certas sequencias que provam que se Hitchcock tivesse a liberdade necessária, Quando Fala o Coração seria com certeza bem melhor. Prova disso é que a mesma equipe (roteirista, atores e técnicos), livre da supervisão de Selznick, conseguiu atingir um resultado positivo com Interlúdio.
Embora não seja um filme ruim – apesar de mal construído – Quando Fala o Coração não era um dos favoritos nem do próprio Hitchcock, que o reconhecia como um de seus filmes falhos. Aliás, é mesmo difícil reconhecer o filme como sendo realizado pelo mestre do suspense, pois há poucos elementos nele que remetem a características típicas do diretor. Acredito que o filme se insere numa fase que não foi definitivamente a melhor do diretor, que, no entanto, na década seguinte daria a volta por cima, realizando seus melhores filmes, inúmeras obras-primas em sequência, culminando com seu filme mais popular – Psicose.
Quando Fala o Coração (Spellbound) — EUA, 1945
Direção: Alfred Hitchcock, William Cameron Menzies (apenas sequência do sonho)
Roteiro: Ben Hecht, Angus MacPhail
Elenco: Ingrid Bergman, Gregory Peck, Michael Chekhov, Leo G. Carroll, Rhonda Fleming, John Emery, Norman Lloyd, Bill Goodwin, Steven Geray, Donald Curtis, Wallace Ford, Art Baker, Regis Toomey, Paul Harvey, Jean Acker, Irving Bacon, Edward Fielding, Jacqueline deWit, Erskine Sanford
Duração: 111 min.