Sob quaisquer ângulos que se pretenda analisar Pulp Fiction, é inevitável a conclusão de que ele não só foi um dos filmes mais importantes dos anos 90, como também um grande influenciador de uma geração inteira, um divisor de águas cinematográfico, por assim dizer. O estilo inconfundível de filmar que Quentin Tarantino tão bem estabeleceu com o seu Cães de Alguel apenas dois anos antes, amalgamando técnicas variadas em um resultado único e original ganhou uma espécie de clímax antecipado com Pulp Fiction, já que, normalmente, cineastas de renome têm uma curva de crescimento significativa, que pode durar décadas, para chegar a seu ápice. E nem mesmo me atrevo a afirmar categoricamente, passados todos esses anos, que o segundo longa de Tarantino é mesmo seu ponto mais alto, pois eu realmente não saberia mais dizer; todavia, sem qualquer sombra de dúvida, é esse o filme que abriu de vez as portas para o diretor e que também mais profunda e imediatamente imiscuiu-se de maneira indelével na cultura pop, com uma verdadeira avalanche de diálogos icônicos, músicas inesquecíveis e sequências arrebatadoras.
Mas o que faz Pulp Fiction ser Pulp Fiction?
Essa é uma pergunta que pode ter uma miríade de respostas, todas elas válidas. Tenho para mim, porém, que o grande destaque da obra é a forma como Tarantino, que escreveu o roteiro com base em histórias criadas por ele e por Roger Avary, conta três histórias – quatro, se contarmos com a do casal que tenta roubar um diner que abre e fecha a projeção – substancialmente independentes inspiradas no tipo de literatura que o título escancara, em uma complexa estrutura de narrativa não-linear, cada uma com seu próprio começo, meio e fim, mas que dialogam entre si dentro da temática geral do submundo de bandidos em Los Angeles e arredores. Mais uma vez, o cineasta refaz, à sua imagem, o referido recurso da montagem não-linear, algo que ele já havia esboçado em seu primeiro filme, mas que, aqui, faz parte dos alicerces estruturais da progressão narrativa. Vemos um pouco de grandes clássicos inquestionáveis como Cidadão Kane, Rashomon e Annie Hall que se aventuraram por esse caminho, com sucesso indiscutível, mas com uma pegada muito própria, muito pessoal do diretor – talvez possamos chamá-la de “toque Tarantino”, mas que só foi realmente possível graças, novamente, ao trabalho irretocável de sua saudosa parceira de longa data Sally Menke na ilha de edição.
Se alguma coisa, Tarantino resgatou essa técnica, reempacotou-a e reapresentou-a a uma audiência que a recebeu maravilhada, mesmo críticos à época já veteranos. E é perfeitamente possível perceber o quanto isso é verdade ao pararmos para mentalmente enumerar a quantidade de filmes pós-Pulp Fiction que, em maior ou menor grau, fizeram abertamente o uso da mesma técnica, alguns com resultados espetaculares como Amnésia e Cidade de Deus. A transformação – ou, talvez, apropriação – da narrativa não-linear como algo próprio, diria que essa é uma das características mais incompreendidas de Tarantino. O diretor é acusado de copiador, plagiador e todo tipo de sinônimo disso, como se nenhum outro diretor fizesse o mesmo ou como se o próprio Tarantino já não tivesse afirmado que referencia sim obras que gosta em maior ou menor grau. Mas o que o diretor sabe fazer é transformar tudo que copia ou pega emprestado em algo que é facilmente identificável como sendo dele. Sabemos que estamos diante de um filme de Tarantino mesmo que sejamos apresentados à obra lá pela metade. O mesmo se pode dizer de diretores como Woody Allen e Steven Spielberg. Se isso é algo bom ou ruim, não cabe aqui julgar. O que fica evidente é que Tarantino sabe converter o que aparentemente é lugar-comum em sua assinatura e foi isso que ele fez com a narrativa não-linear em Pulp Fiction: transformou o básico em uma estrutura que se desdobra em diversas histórias paralelas e, às vezes, tangenciais, que, ao final, deixam evidente o domínio que o diretor tem sobre a câmera e sobre a montagem, além da sempre presente e sempre perfeita trilha sonora, outro divisor de águas cinematográfico, aliás.
Vejam, por exemplo, o pulo temporal que Tarantino faz no meio do filme, quando vemos o pequeno Butch (como adulto, o personagem vivido por Bruce Willis) recebendo a visita do Capitão Koons (Christopher Walken), que convivera com seu pai quando os dois foram prisioneiros de guerra. Toda essa cena, que conta uma história só com um longo monólogo de Koons em um plano-sequência único, que não se desvia do personagem, tem como objetivo demonstrar para nós a importância do relógio do pai de Butch. Isso acontece já no meio da entrecortada narrativa que Tarantino nos impõe, mas, quando o flashback acontece, nós o aceitamos naturalmente, sem estranheza ou sem nem por um momento deixar de entender o que está acontecendo. Hoje, podemos achar isso algo óbvio e pouco imaginativo, mas tentem transportar-se para 1994, quando Tarantino lançou Pulp Fiction em Cannes quase que como uma obra experimental e recebeu aplausos de pé por longos minutos saindo com a Palma de Ouro. A “identidade tarantinesca” que nascera em Cães de Aluguel, amadureceu talvez até prematuramente aqui, tomando o mundo de assalto.
E não é só isso.
Cada uma das linhas narrativas que populam esse filme em episódios de Tarantino é crivada de diálogos que funcionam como uma expansão do que vimos em sua primeira obra. Enquanto seu primeiro filme tinha diálogos que ficavam circunscritos a um mesmo círculo de pessoas composto por gangsteres ou assaltantes de banco de origem caucasiana, em Pulp Fiction vemos uma profusão de personagens diferentes em dinâmica de dupla (ou quase): o casal de assaltantes amadores que abre e fecha o filme (Tim Roth e Amanda Plummer); a dupla de assassinos Vincent Vega (John Travolta, revivido por Tarantino) e Jules Winnfield (Samuel L. Jackson, revelado para o mundo aqui) em uma missão; o chefão do crime Marsellus Wallace (Ving Rhames) e o lutador de boxe no crepúsculo de sua carreira Butch (Willis) deparando-se com os estupradores Zed (Peter Greene) e Maynard (Duane Whitaker); Vincent Vega e Mia Wallace (Uma Thurman) às voltas com uma overdose de heroína e com o fornecedor de droga Lance (Eric Stoltz) e sua esposa Jody (Rosanna Arquette) e Vincent, Jules, Jimmie (o próprio Tarantino) e o “resolvedor de problemas” Mr. Wolf (Harvey Keitel) lidando com uma desagradável situação envolvendo sangue e pedaços de cérebro espalhados em um carro. Histórias estanques ou semi-estanques costuradas por uma temática única em um filme que as conta fora de ordem, mas as conecta brilhantemente.
Cada diálogo é cuidadosamente talhado para funcionar com seu personagem e a respectiva interação com o outro personagem. Há de tudo um pouco, além da incrível capacidade de Tarantino de inserir menções à cultura pop a todo momento. As frases sobre as pequenas diferenças entre Europa e Estados Unidos, sobre os “atos medievais” de Marsellus em cima de Zed, sobre a citação da Bíblia que Jules usa antes de matar e diversas outras são, se quisermos, tão vazias de conteúdo quanto repletas de ritmo; ou tão cheias de críticas sociais quanto escolhermos imaginar, mas sem esquecer que diversas delas são retiradas – algumas palavra por palavra – de obras anteriores em mais uma demonstração da capacidade de Tarantino de remixar o que já existe e transformar em algo seu. O resultado é a entrada de todas elas e muito mais na cultura geral de cinéfilos (que muitas vezes nem mesmo sabem que são citações de citações) e, também, de espectadores casuais. E tudo isso casado com uma escolha cirúrgica de canções para cada momento, cada situação, em uma trilha sonora antológica, talvez a melhor do gênero, em mais uma demonstração assombrosa de curadoria musical por parte de Tarantino.
E não podemos esquecer do vasto elenco citado acima. São, em linhas gerais, papeis verborrágicos e com pouca ação – mais uma marca de Tarantino – que exige que algum tipo de conexão imediata seja criada entre o personagem e o espectador, sob o risco de afastamento ou de desinteresse por cada uma das historietas entrecortadas. Não só os diálogos brilhantes dão esse suporte necessário, criando muitas vezes essa ponte entre ficção e realidade (afinal, quem é que coloca maionese em batata frita, não é mesmo?), como cada um do elenco consegue suprir esse espaço com velocidade meteórica, até mesmo Roth e Plummer que talvez tenham a menor – mas não menos significativa – participação em toda a obra.
Não é todo filme que consegue esse tipo de façanha: ser um fenômeno pop em sua própria época e, ao mesmo tempo, ser uma obra que demonstra o mais absoluto controle de câmera e de montagem. Pulp Fiction, com toda sua extrema violência (tem pedaços de cérebro no cabelo de Vince e Jules!), é um deleite para os olhos e para os ouvidos, além de ser instrutivo. Afinal de contas, onde mais você poderia saber que, em Amsterdam, eles servem cerveja em copos de vidro no cinema ou que massagem nos pés sempre tem conotação sexual?
- Crítica originalmente publicada em 30 de dezembro de 2015, mas completamente remasterizada para republicação no dia de hoje, 05/08/19.
Pulp Fiction – Tempo de Violência (Pulp Fiction, EUA – 1994)
Direção: Quentin Tarantino
Roteiro: Quentin Tarantino, Roger Avary
Elenco: Tim Roth, Amanda Plummer, John Travolta, Samuel L. Jackson, Bruce Willis, Ving Rhames, Rosanna Arquette, Eric Stoltz, Uma Thurman, Christopher Walken, Maria de Medeiros, Harvey Keitel, Duane Whitaker, Peter Greene, Quentin Tarantino
Duração: 154 min.