Este arco de Promethea conclui a jornada da personagem no caminho pelas esferas superiores da Cabala. É uma aventura marcada por histórias de características bem distintas, com um lado místico e mágico e outro mais ligado à ação e à visão geral de um embate entre super-heroínas e seus vilões. Aqui, Alan Moore faz uma ponte entre o lado divino e reflexivo, no incrível mundo da Imatéria, e a instintiva realidade mundana, onde questões vazias e um grande apego à materialidade dão as cartas da vida. Também é retomada a narrativa das investigações (ou caçadas?) à figura de Promethea, acusada de promover situações que colocam a vida dos outros em perigo, bem como um possível “fim do mundo”. São duas faces dramáticas bem distintas, que o próprio autor assume em uma das edições, deixando claro que a brusca distinção entre o aprendizado (ou seja, a simbólica procura de Sofia e Barbara) se encerrou. Agora é o momento de voltar à rotina e às situações da Terra, com seus perigos tacanhos e vontades questionáveis.
Na primeira parte do arco, quando as esferas da Cabala ainda estão sendo percorridas pela dupla de Prometheas, reina absoluta a arte de J.H. Williams III, com extensa variação nos conceitos de cada Sefirá, em cor, estilo e composição dos caminhos que ligam essas regiões (até mesmo a “travessia do abismo” de Daath, numa das minhas edições favoritas!). A chegada a Kether (Coroa), é tanto uma chegada ao objetivo e o penúltimo estágio da maturidade mental, física e espiritual das personagens, mas também é o ponto de partida, a grande explosão que dá origem ao nosso Universo (no sentido micro e macro), criando a possibilidade de surgimento da consciência humana. É de lá que Barbara, Steve e Sofia dão o salto do Louco e “caem” na Terra, cada um seguindo a necessidade de suas existências naquele momento: o casal reencarnando como bebês gêmeos (momento imensamente emocionante do enredo) e outra chegando com o seu próprio corpo ao parque de onde saiu, cheia de vitalidade, novas experiências e poder — o que não significa que ela está livre de erros e ações precipitadas, como veremos mais adiante.
Há um grande cinismo do autor na segunda parte do arco, quando faz com que Sofia se engaje em uma luta pelo poder com outra Promethea (embora ela não esteja errada, vale dizer, este não era o caminho a ser tomado). É como se estivesse desconstruindo a ideia de que “pessoas iluminadas são isentas de falhas, não cometem excessos, não cometem erros de julgamento ou de compreensão”. Sofia uniu a sua empatia com a vontade de aprender magia e escalou a Cabala, tendo aprendido muita coisa, modificado sua visão da vida no mundo material e no mundo espiritual. Mas quando manifestada no naipe de ouros, na vida prática, na matéria, ela está sujeita a todas as falhas da carne, da mente, das emoções e do espírito. É como se Moore estampasse um grande cartaz dizendo que não é porque alguém tem um grandioso conhecimento do mundo invisível que será alguém elogiável em todos os aspectos de sua vida, até o dia de sua morte. Longe disso. Mas há um fator curioso aqui. Moore parece muito favorável à ideia de Crowley, de que a punição para os iniciados (ou seja, os magos) sempre deve ser maior do que a punição para as pessoas comuns que cometem os mesmos erros. E é justamente por essa estrada que o texto do quadrinho segue, trazendo a engraçada edição do julgamento e as consequências da briga entre as Prometheas, manifestando as energias das cartas Torre (destruição imprevisível), Diabo (excessos, materialismo e desequilíbrio) e Pendurado (sacrifício, restrições e novos pontos de vista) do tarô.
Como não é a primeira vez que duas mulheres vestindo esse manto brigam por suas existências como Seres divinos, entendemos que este é um dilema e um aprendizado ainda não conseguido pela personagem, e que, por isso mesmo, a repetição da situação deve acontecer, com o julgamento e o devido pagamento pela infração cometida. O Livro 4 de Promethea é erguido num salto de situações opostas. Saímos da plenitude da Coroa, da cabeça de Deus, e chegamos ao ventre da Terra, às mãos do vício e da mesquinharia. Uma situação de dualidade entre esferas que rege muito mais aspectos da vida do que estamos dispostos a admitir.
Promethea – Livro 4 (Edições #19 a 25) – EUA, abril de 2002 a maio de 2003
No Brasil (edição lida para esta crítica): Panini (2015 e 2017: volumes um e dois dos encadernados de Promethea)
Roteiro: Alan Moore
Arte: J.H. Williams III
Arte-final: Mick Gray, J.H. Williams III
Cores: Jeromy Cox, J.H. Williams III
Letras: Todd Klein
Capas: J.H. Williams III, Mick Gray, Jeromy Cox
Editoria: Scott Dunbier, Neal Pozner, Kristy Quinn
Tradução: Octávio Aragão
168 páginas