Após a leitura do Livro 1, que traz a iniciação mágica para Promethea, nos deparamos com um arco que sai da superfície das primeiras apresentações e, sem medo de confundir ou deixar o leitor com mais perguntas do que respostas, coloca a protagonista em contato indireto com a Árvore da Vida (Cabala) e com o tarô, além de mais alguns conceitos sobre magia. Num primeiro momento (Rocks and Hard Places), Sofia aprende os segredos do naipe de ouros, ainda na esteira das lições dos 4 elementos (representados nos naipes) que se iniciou no outro arco. Aqui, ela conhece mais um desses blocos que moldam a existência humana, o naipe do elemento terra, do mundo material. E esta era a lição que ela precisava ter, antes de lidar com as figuras vilanescas que querem exterminá-la desse plano da existência.
Para Alan Moore, conhecer certos mistérios pode despertar a curiosidade e a maldade em grupos ou indivíduos próximos, o que tende a dificultar a jornada de algumas pessoas nesta seara, ou até afastá-las do caminho da iluminação. Na prática, o início desse livro mostra uma jovem cética que se apaixona por uma criação artística, tem contato com algo inimaginável durante a sua pesquisa, e agora precisa correr atrás de tudo aquilo que sempre desprezou, que sempre ridicularizou, que sempre viu como parte da fraqueza de algumas pessoas. Não é, porém, uma espiritualidade ou contato com “outro plano” de forma boba, rasa ou forçada.
Isso é tão verdade que, na edição seguinte, Guys and Dolls, ao trabalho com o naipe de ouros, Sofia consegue manifestar outras versões suas da Imatéria no mundo real, com o intuito de lutar contra a horda de demônios e seres destrutivos enviados para acabar com Promethea. Numa narrativa ágil, com ótimas lutas (a arte de J.H. Williams III sempre impressionando na composição das cenas) e emoções intensas, vemos quanto o fulgor da espiritualidade modificou a forma dessa jovem ver o mundo, e desse ponto em diante, sua vida, seu engajamento em causas político-sociais, suas vontades e seus pensamentos são bem mais profundos e marcados por significados que ela nunca havia imaginado. A tese defendida em Promethea é que o encontro de alguém com o mundo espiritual não necessariamente fará com que a pessoa se torne alguém obtuso, fechado para a ciência, para a secularidade e para o bom-senso. Mas isso, claro, vai depender se esse contato espiritual é baseado numa doutrina de destruição do outro ou no desprezo aos não-convertidos; e se a pessoa já tem uma construção pessoal, ideológica, histórica e familiar que a faça utilizar o sagrado como tentativa de justificar suas desumanidades. Se a pessoa vem manchada por essas problemáticas morais, éticas e ideológicas e não se livra delas, não há magia alguma acontecendo. Há apenas a ideia de um misticismo segregador e odioso.
O tempo em que o drama se passa também diz muito: a passagem do ano de 1999 para o ano 2000. Há citações diretas ao “bug do milênio” (vocês se lembram disso? Eu tinha 12 anos na época, e morria de medo, mesmo sem entender muito bem do que se tratava). É o fim simbólico de um ciclo que faz sentido ser utilizado como despertar para algumas pessoas. Na edição #9, Bringing Down the Temple!, Sofi se dá conta de que mesmo conhecendo a Imatéria relativamente bem e tendo contato com as representações ancestrais mágicas/artísticas de Promethea, ela ainda não domina o processo de manifestar coisas em sua realidade. De alterar aspectos simples e certas energias que vibram no mundo onde vive. Por isso é que ela precisa aprender a magia do caos. E tudo vai ficando ainda mais instigante, porque no capítulo seguinte, esse aprendizado é realizado através de um fundamento material que emana para o espiritual. E é assim que temos mais uma gloriosa narrativa de sexo concebida pelo mago de Northampton.
Moore já tinha criado uma das melhores sequências de sexo nos quadrinhos quando escreveu a Saga do Monstro do Pântano (quem nunca leu Rito de Primavera, faça um favor a si mesmo e leia!), e repete a dose nesta edição de Promethea, transcrevendo a magia sexual da maneira mais interessantemente didática e bonita, mostrando para o público os fundamentos da prática mágica, o conhecimento que se adquire com ela e como tudo isso pode mexer com o corpo de alguém. O ato sexual é o meio de a semi-deusa e seu mago-professor aprenderem magia, falarem das diferentes energias do mundo, sentirem a natureza fluir, em inúmeros sentidos, enquanto algo novo é destravado na visão, entendimento, sentimento e compreensão da nova Promethea em relação às possibilidades da existência.
Embora eu não desgoste da edição #11, Pseunami, devo admitir que após um enredo tão poderoso e inesquecível quanto o do volume anterior, não dá para vê-la com olhos completamente encantados. Mas considero uma boa edição de transição, uma pausa estratégica no meio de uma busca, para que vejamos Promethea atuar diante de uma ameaça destrutiva, com o auxílio secundário dos Heróis Científicos — uma espécie de Liga da Justiça orgulhosa, atrapalhada e burocrática dessa realidade.
O encerramento do arco se dá com uma edição inteiramente voltada ao entendimento do Universo, da civilização, da humanidade e das menores porções da vida cotidiana através da viagem de Promethea pelas lâminas do oráculo mais conhecido. Ao lado do sexo mágico, esta é a minha edição favorita do arco, pois traz um conhecimento imenso, um contato da personagem com coisas novas e cheia de símbolos capazes de nos fazer pensar por muito tempo na História e nos desejos da humanidade.
Em The Magic Theatre of the Mind, a arte de J.H. Williams III volta ao esplendor que foi a sua criação em Sex, Stars and Serpents, talhando um padrão visual distinto para cada um dos 22 Arcanos Maiores, do Louco ao Mundo (aqui chamado de Universo. Aliás, como o padrão utilizado é o tarô de Thoth, a carta da Força é chamada de Luxúria e a da Temperança é chamada de Arte). A base de reflexão é a evolução da existência, ou seja, da formação da sopa estelar que gerou a Grande Expansão, o Big Bang, até o renovo da sociedade contemporânea vindo com a revolução digital. É uma viagem imensa, poderosa e que encanta o leitor pelas inúmeras probabilidades analíticas sugeridas. Contudo, não é um texto fácil de se entender. A exigência aqui é que degustemos a poesia dos personagens e entendamos as camadas de significados atribuídos a essas coisas. Afinal de contas, nós estamos aprendendo também. Somos os discípulos da discípula. A terceira camada em uma linha de contato com a energia que transforma o mundo…
Promethea – Livro 2 (Edições #7 a 12) – EUA, abril de 2000 a fevereiro de 2001
No Brasil: Pixel Media Magazine n°10 – Pixel Media janeiro de 2008 / Promethea n°15 – Pixel Media junho de 2008 / Promethea – Edição Definitiva n° 1 – Panini novembro de 2015
Roteiro: Alan Moore
Arte: J.H. Williams III
Arte-final: Mick Gray
Cores: Jeromy Cox, José Villarrubia
Letras: Todd Klein
Capas: J.H. Williams III, Mick Gray, Wildstorm FX, Todd Klein, Alex Sinclair, Jeromy Cox
Editoria: Scott Dunbier, Jeff Mariotte
Tradução: Octávio Aragão
184 páginas