A impressão que dá, ao terminar de ver Profecia do Inferno, é que Yeon Sang-ho, criador e diretor da série (baseada no webtoon que escreveu com Choi Gyu-Seok) e mais conhecido por seu excelente longa Invasão Zumbi, que foi seguido de uma não tão excelente continuação, é que ele teve duas ideias separadas que, então, ele resolveu juntar em uma história só. A primeira ideia, a mais rasa, era a de monstros que apareciam na Terra do nada para espancar pessoas e a segunda, a mais complexa, era uma provocação teológica sobre religiões organizadas e o quanto nós, humanos, temos necessidade de guias espirituais para racionalizar o inexplicável.
E o mais curioso é que essa junção bizarra e improvável funciona muito bem em uma temporada inaugural curta (que poderia muito bem ser a única – mais sobre isso adiante), de apenas seis episódios, mas com estrutura de “duas em uma”, já que os três primeiros contam uma história e os três últimos outra história, com outro elenco, que em um primeiro momento parecem apenas se passar no mesmo universo separadas por um espaço temporal de quatro ou cinco anos entre cada bloco, mas que, na verdade, são intimamente relacionadas. Essa quebra de expectativas de uma temporada fluida não só é interessante, como bem engendrada na forma de arcos e acaba renovando o interesse pela narrativa macro, mesmo que exija um ajuste mental quando a elipse ocorre.
Na história, anjos sinistros na forma de “cabeças holográficas” aparecem com profecias para pessoas aparentemente aleatórias: eles indicam exatamente quando elas irão morrer e se vão ou não para o Inferno. No dia e hora estabelecidos, no lugar de a pessoa simplesmente morrer, eis que surgem três brutamontes parecidos com o Cara-de-Barro, aquele inimigo do Batman, só que de piche ou algo semelhante, que correm atrás da vítima, a espancam violentamente e, em seguida, a incineram, deixando um corpo completamente carbonizado de presente para os transeuntes estupefatos ao redor. A violência desses momentos é tanta que chega a ser cômica, com a primeira dessa manifestações que vemos praticamente destruindo uma rua inteira de Seul. Mas é uma comicidade nervosa, inquietante e que, estranhamente, nessa lógica kafkiana determinista do showrunner, acaba funcionando, nem que seja para suavizar, por assim dizer, as discussões mais sérias que se dão ao redor e em decorrência desses fenômenos inexplicáveis.
Afinal, os homens primordiais – e os não tão primordiais também – olharam para o sol e, claro, jamais poderiam imaginar que estavam vendo uma estrela incandescente, logo criando racionalizações de cunho místico. Nada mais natural. E o que o diretor faz, aqui, é exatamente o mesmo, com uma discreta organização religiosa liderada pelo quieto, mas assustador Jeong Jin-soo (Yoo Ah-in) e batizada de Nova Verdade surgindo para explicar que os eventos testemunhados por todos são manifestações do descontentamento de Deus com a Humanidade, mais especificamente com os pecadores que passam a ser punidos dessa maneira consideravelmente mais escancarada e levados para a danação eterna de forma que os demais possam perceber seus erros e parar de se desviar do caminho da pureza. Em outras palavras, eventos de natureza misteriosa passam a fazer parte da narrativa teleguiada de um grupo pequeno de pessoas com o objetivo de obter controle e, no final das contas, o bom e velho poder. Quem já viu isso antes no cotidiano?
Enquanto a calma iluminada do líder do culto e o medo generalizado dos eventos sobrenaturais começam a amealhar seguidores aos borbotões, o espectador é apresentado ao policial Jin Kyeong-hoon (Yang Ik-june), um dos membros da força-tarefa responsável pelas investigações, e à advogada Min Hye-jin (Kim Hyun-joo), que é contratada por Park Jeong-ja (Kim Shin-rok), desejosa em sacramentar a oferta em dinheiro que a Nova Verdade lhe fez para que sua punição, que acontecerá em três dias, seja transmitida ao vivo para o mundo todo. Esse é o núcleo humano não-religioso da primeira parte da temporada e ele é surpreendentemente bem trabalhado, com o impacto das dúvidas sobre o que vem ocorrendo, notadamente o julgamento divino versus o julgamento humano, afetando-os sobremaneira e estabelecendo uma empatia entre eles e deles com o espectador que é muito raro de se obter tão rapidamente, especialmente em obras que tem o seu lado espetaculoso para chamar a atenção daqueles que precisam disso.
Em termos de estrutura narrativa, o que vemos, nesta primeira metade, é uma corrida contra o tempo que tem o “julgamento e execução” de Park Jeong-ja como o segundo final do cronômetro que, então, abre espaço para algo ainda mais insidioso e surpreendente que muda o status quo da série. É essa mudança que serve de trampolim para o pulo temporal que, sem dar spoilers – sequer mencionarei os novos personagens – já nos apresenta a um mundo em que a Nova Verdade é uma igreja consolidada, com a história lidando com outra corrida contra o relógio, uma que, ao contrário da primeira, pode fazer ruir tudo o que foi construído.
Apesar do passo acelerado da temporada, sensação que é amplificada pelo tal corte abrupto em sua metade, Yeon Sang-ho não é exatamente críptico em sua mensagem bastante pessimista sobre a Humanidade. A condenação à religiões organizadas que tratam seus seguidores como massa de manobra é evidente e martelada mais vezes do que as criaturas sobrenaturais socam e chutam suas vítimas e a própria massa de manobra – nós! – é coloca em xeque e ferozmente criticada pelos diálogos e pelos desdobramentos da história, o que inclui a existência de um “braço” mais radical da religião recém-criada – a organização Arrowhead, capitaneada por um vlogueiro ensandecido – que toma para si as rédeas divinas e faz o que o furor sacrossanto permite. Ou seja, o showrunner não deixa pedra sobre pedra e tem como objetivo único incomodar o espectador até não poder mais, o que, na verdade, ele acaba exagerando em suas repetições constantes que fazem a história, apesar de curta, por vezes ratear em falso e passar a impressão de didatismo desnecessário.
A autocontenção da temporada é algo também a ser celebrado. Obviamente que não se pode esperar explicações racionais e lógicas para os eventos sobrenaturais, até porque não é esse o objetivo da série, pelo que o showrunner consegue, no pouco tempo que tem, criar arcos narrativos que acabam e ao mesmo tempo se completam e conseguem chegar a um fim mais do que completamente satisfatório. Sim, um fim mesmo que é representado pela cena – novamente, fiquem tranquilos, pois não há spoilers – em que o táxi vai embora, pois ali o que temos é a medida certa entre encerramento de história e abertura de espaço para interpretações sobre o que o futuro reserva. Infelizmente, porém, Yeon Sang-ho, dentro da lógica hollywoodiana – que é a lógica comercial que as produções sul-coreanas recentes seguem, é inescapável – cria uma coda de alguns segundos que estabelece a “necessidade” de uma nova temporada, de mais “explicações”, até porque o que ele faz, pelo menos em tese, quebra a lógica interna do que foi apresentado, ainda que seja 100% previsível e que talvez faça referência a um certo resultado de autópsia que é mencionado apenas uma vez, para nunca mais ganhar desenvolvimento.
Claro que serei o primeiro a ver uma eventual nova temporada de Profecia do Inferno, pois o tema me interessa e é provocativo em diversos níveis, mas, se eu pudesse escolher, preferiria o belo fim mais definitivo de momentos antes. Seja com for, Yeon Sang-ho, com uma pessimista, estranha, mas vencedora combinação de elementos que evocam trabalhos anteriores como Lost, The Leftovers, Além da Imaginação combinados com uma infelizmente enorme quantidade de filmes e séries sobre os mais variados cultos e suas consequências perniciosas, consegue prender o espectador e criar as bases no mínimo para uma conversa interior sobre a natureza da crença e das religiões organizadas.
Profecia do Inferno (지옥/Hellbound – Coréia do Sul, 19 de novembro de 2021)
Criação: Yeon Sang-ho (baseado em webtoon de Yeon Sang-ho e Choi Gyu-seok)
Direção: Yeon Sang-ho
Roteiro: Choi Kyu-seok
Elenco: Yoo Ah-in, Park Sang-hoon, Kim Hyun-joo, Park Jeong-min, Won Jin-ah, Yang Ik-june, Kim Do-yoon, Kim Shin-rok, Ryu Kyung-soo, Lee Re, Im Hyeong-guk
Duração: 311 min. (seis episódios)