No momento atual, em que vemos negacionistas conseguirem ecoar suas opiniões pelo país e até causando mortes durante a pandemia, creio que são necessários cuidados em qualquer abordagem que promova um embate entre fé e ciência. No caso do filme Predestinado, que ainda trata sobre cirurgias espirituais num período pós João de Deus, é ainda mais importante construir uma narrativa com o mínimo de maturidade. Errar a mão em uma obra assim possibilita o flerte com temas infelizes, mesmo que não seja a intenção dos realizadores; e lamentavelmente é o que acontece.
Baseado em uma história real, o longa acompanha José Pedro de Freitas, popularmente conhecido por Zé Arigó (Danton Mello), um homem simples que morava junto com a sua esposa Arlete (Juliana Paes) em Congonhas, Minas Gerais. Na década de 50, Arigó tornou-se internacionalmente conhecido por suas “cirurgias espirituais”, chegando a atender centenas de pessoas por dia. De acordo com o relato dele, quem o conduzia durante os procedimentos cirúrgicos era o espírito de Adolph Fritzum, um médico alemão desencarnado durante a Primeira Guerra Mundial.
Antes de tudo, é importante ressaltar que não há problema algum em um filme adotar um caráter fortemente religioso. Se o conteúdo for apresentado com profundidade, aliado a uma forma afiada, isso pode resultar em obras admiráveis. Por exemplo, sou um profundo admirador de Até o Último Homem, de Mel Gibson, e Silêncio, de Martin Scorsese, dois filmes explicitamente cristãos. No cinema brasileiro, ainda temos como amostra disso o divertido O Auto da Compadecida, de Guel Arraes.
Portanto, a religiosidade está longe de ser o problema de Predestinado. O fato é que o diretor Gustavo Fernández em nenhum momento consegue quebrar a sensação de que seu filme não passa de uma propaganda. Isso porque não há aqui um arco claro para o protagonista. A resistência que Arigó tem com as “vozes” é logo superada no primeiro ato. A partir disso, o que vemos são várias sequências ressaltando como ele era um sujeito bom e perseguido. Aliás, há uma cena com a presença de Chico Xavier que só reforça a sensação de propaganda, uma vez que não movimenta a trama para frente.
Inclusive, sobre esses momentos sem impacto da narrativa, percebam como as cenas não moldam ou trazem alguma consequência interna para o personagem. Há até uma tentativa de promover um drama familiar, mas de forma preguiçosa. Por exemplo, na metade da película, o filho do protagonista se queixa que o pai trata todo mundo, mas não consegue curá-lo de um problema na perna, sendo um dilema com potencial. No entanto, logo na sequência, o drama do rapaz é descartado, ao ponto de sequer ter outra fala até o final do filme. Portanto, além de errar na construção dramática, Fernandéz parece não cuidar da continuidade da própria obra.
Já que única intenção aparente é promover as cirurgias espirituais e a figura de Arigó, com absurda simplicidade, uma opção seria mostrar o impacto do protagonista na vida daqueles que o cercam, mas isso também não ocorre.Vemos as curas físicas, mas nenhuma atenção com o interior dos personagens. Para uma obra supostamente religiosa, é absurdo que os realizadores não entendam que o processo da fé é sobretudo interno.
Visto que toda a atenção da direção está mesmo nas “cirurgias”, vale dizer que visualmente convence O uso de efeitos práticos chama a atenção e a exposição de sangue e dos órgãos impactam. Outro ponto positivo está na atuação de Danton Mello, que transita com eficiência entre a personalidade tímida de Arigó e o agressivo Fritz. Em contrapartida, Fernandéz não encontra nenhuma outra solução visual que nos faça se envolver com a história. É tudo bastante básico, plano de ambientação, primeiro plano, close-up, com iluminação padrão; resultando em um tom quase televisivo.
Porém, além de ser estruturalmente pobre, Predestinado possui uma abordagem perigosa diante do crescimento do negacionismo no Brasil, retomando o que foi dito no primeiro parágrafo. Obviamente, Arigó sofreu contestações por não ter uma preparação acadêmica para a medicina, isso é necessário. Contudo, a obra trata essas pessoas, especificamente os médicos, como figuras rancorosas e maquiavélicas. Podendo ressaltar como alguns elementos da fé ainda são difíceis de explicar racionalmente, o longa opta por um maniqueísmo barato e vazio. Até mesmo o padre da cidade recebe uma redenção, enquanto o presidente da associação de médicos termina a película vilanizado.
Qualquer pessoa minimamente madura entende que a ciência existe justamente para tentar explicar o que ainda permanece oculto. Para isso, questionar é necessário. Não se trata de duvidar, mas sim de tentar provar. Tratar especialistas como vilões de uma narrativa, dá voz a um tipo de pensamento reacionário difícil de aceitar. Não creio que os realizadores de Predestinado tenham feito isso premeditadamente. O único pecado da direção foi a condução preguiçosa. Mas até mesmo em um projeto repleto de erros, flertar com a negação é imperdoável.
Predestinado – Brasil, 2022
Direção: Gustavo Fernández
Roteiro: Jaqueline Vargas
Elenco: Danton Mello, James Faulkner, Juliana Paes, Antonio Saboia, Cássio Gabus Mendes, Marco Ricca, Alexandre Borges, Ravel Cabral, Marcos Caruso, Carlos Meceni, Luiz Adelmo Manzano, Maurício de Barros, Aldo Bueno, Matheus Fagundes José Trassi, Sergio Cavalcante
Duração: 110 min