Obs: Leia a crítica dos demais volumes da série, aqui.
Publicada entre 1995 e 2000 pela Vertigo Comics, Preacher foi uma das séries mais importantes do selo adulto da DC Comics, juntamente com The Sandman, Hellblazer, Monstro do Pântano e Homem-Animal. Garth Ennis, que já gozava de sólida reputação em diversas editoras e que criara Hitman em 1993, trabalhou no mesmo ano com Steve Dillon em um arco de Hellblazer em que se discutia sobre o que aconteceria se um anjo e um demônio copulassem e o espírito resultante acabasse tomando um mortal. Com base nesse germe de ideia, os dois unir-se-iam dois anos depois para criar o pastor Jesse Custer, que se torna o receptáculo de Gênesis, um espírito anjo-demônio que lhe dá o poder da Palavra, instrumento usado para fazer com que qualquer um obedeça suas ordens.
Assim, ao longo de 66 números regulares, cinco one-shots e uma minissérie (repararam no 666?) a inseparável dupla criou um fantástico universo que expande e muito a narrativa inicial e resulta em uma das mais adoradas histórias do gênero. A temática, fortemente calcada em mitos religiosos, especialmente os judaico-cristãos, coloca o Céu e o Inferno em choque com um Deus ausente que é objeto da incessante procura por parte de Custer, de sua ex-namorada Tulipa O’Hare e do vampiro irlandês Cassidy, que se juntam por acaso (ou não…). A atmosfera criada mistura road-movies com faroestes com filmes de horror em um coquetel explosivo e inteligente, que merece ser apreciado – mas com moderação, pois trata-se de uma obra intensa – por quem gostar de quadrinhos.
No primeiro volume – conforme publicado no Brasil em encadernados pela Panini – há, na verdade, um arco completo que dá nome à publicação e que é composto de quatro números e um mini-arco de três números que, na verdade, faz parte do arco maior Até o Fim do Mundo. No entanto, a escolha da editora para a composição do volume faz sentido e a crítica leva em conta o volume completo, como publicado no Brasil.
O referido arco completo – A Caminho do Texas – usa o artifício narrativo do enquadramento da história em dois momentos “no presente”, com Jesse, Tulipa e Cassidy conversando em um restaurante de beira de estrada. Assim, o miolo da história se dá em um longo flashback que é muito bem inserido na narrativa, sem confundir o leitor. Nele, Ennis e Dillon nos apresentam à sua criação. Descobrimos como aconteceu a catastrófica possessão de Jesse pelo espírito Gênesis, como funcionam os poderes de sugestão resultantes (o resultado é muito parecido com o que se vê na série Jessica Jones, por parte de Kilgrave) e como Jesse, sua namorada de cinco anos antes Tulipa e Cassidy se reuniram. O que merece nota nessa relação é que, no típico estilo de Ennis, seus personagens são intragáveis, insuportáveis, daqueles que o leitor precisa se esforçar para encontrar alguma nesga de empatia. Em circunstâncias normais, esse aspecto seria negativo, mas, aqui, o trabalho de caracterização é magistral, criando profundidade com poucas palavras e um senso de história pregressa muito presente, história essa que é mantida escondida a sete chaves. Assim, o leitor, se não conseguir encontrar algo na superfície que o faça gostar imediatamente da trinca principal, no mínimo ficará intrigado com esses passados envolvidos em mistério e que são construídos na narrativa como o que são: personagens que não querem falar de suas respectivas histórias e deixam isso bem claro entre eles. Pouco aprendemos – pelo momento – sobre cada um deles e a presença de um vampiro na história sequer é vista como algo minimamente estranho e a vida continua…
Saindo do eixo central, este arco aborda a relação de “gerência angelical” (na falta de expressão melhor) do Céu, com a ausência de Deus. Ainda que, no começo, a narrativa seja críptica, em determinado ponto essa questão é explicitamente abordada em momento talvez exageradamente expositivo, que devia ter sido melhor salpicado ao longo das edições. De toda forma, a existência de castas de anjos – os guerreiros superiores e os “cientistas” inferiores – e a retratação do “Paraíso” como uma espécie de laboratório flutuante é absolutamente inovadora e certamente gerará muita controvérsia entre leitores eventualmente mais devotos à religião Católica, ainda que em nenhum momento tenha detectado desrespeito pelos autores. A ausência de Deus, claro, pode ser vista como uma heresia, mas ela é catalisadora da história e era narrativamente essencial, além de permitir uma saudável discussão sobre seu papel na Criação.
Além disso, somos apresentados ao Santo dos Assassinos, uma figura “clinteastwoodiana” enviada pelos anjos cientistas para caçar Gênesis. O silêncio personagem é o responsável pelo banho de sangue do arco, com sua invencibilidade e extrema violência com qualquer um que esboce o mínimo de reação contra ele. A resolução do arco em relação a ele deixa um pouco a desejar, por ser simplista demais, mas funciona como uma nota introdutória ao personagem e também a outro cuja “origem” está de certa forma ligada intimamente ao assassino: Cara-de-Cu. E não, prezado leitor, você não leu errado. Esse é o nome que o personagem – filho de um xerife texano – acaba adotando, por ele ter justamente um rosto que se parece com o orifício anal, depois de uma tentativa de suicídio frustrada. Ainda sem relevância na história – novamente só vemos um tira-gosto dele – a presença asquerosa do sujeito é Garth Ennis sendo Garth Ennis e provocando o leitor o máximo que pode.
O segundo semi-arco é uma história em três partes passada em Nova York em que a trinca principal acaba se envolvendo com um serial killer sádico quando vão procurar a ajuda de Si, antigo amigo de Cassidy, para obter informações sobre o paradeiro de Deus. Narrado a partir do ponto de vista do detetive Tool, auto-denominado o mais azarado do mundo, a história, apesar de manter a ironia de Ennis – dessa vez focada na desordem e caos da cidade grande – e conter a violência gráfica típica de suas histórias que é amplificada pelos traços crus e certeiros de Dillon, deixa a desejar em construção. O problema é que a história contém muita informação e, em seu espaço confinado, acaba sendo encerrada muito rapidamente, sem que se permita um desenvolvimento narrativo compassado e bem estruturado.
Ainda que aprendamos mais sobre Jesse Custer e descubramos que seu senso de moral é surpreendentemente afinado, a relação dele com Tulipa torna-se artificial demais, sempre sendo necessária a lembrança de que um não quer contar seu segredo ao outro e a presença de Cassidy é quase que conveniente demais, em um plano mirabolante talvez demais para se encaixar suavemente na pegada sobrenatural da série. Mas claro que as estocadas de Ennis estão todas lá, como a intolerância, a hipocrisia e incompetência das pessoas, algo que ganha vida brilhantemente no trabalho de Dillon, trabalho esse que, vale dizer, exige maturação por parte do leitor justamente pelo artista não se deixar levar pelo “padrão da indústria”, desenhando seus personagens de maneira que suas personalidades difíceis vazem para suas respectivas aparências.
A Caminho do Texas funciona muito bem como volume introdutório para Preacher. Apesar de uma acentuada queda de qualidade na segunda história, a impressão de conjunto ainda é altamente positiva e abre caminho para o que acabaria sendo uma das mais sensacionais séries em quadrinhos dos anos 90.
Preacher: Vol. 1 – A Caminho do Texas (Preacher: Vol. 1, EUA – 1995)
Contendo: Preacher #1 a #7
Roteiro: Garth Ennis
Arte: Steve Dillon
Cores: Clem Robbins
Letras: Matt Hollingsworth
Capas: Glenn Fabry
Editora original: Vertigo Comics
Datas originais de publicação: abril a outubro de 1995
Editora no Brasil: Panini Comics
Data de publicação: junho de 2012 (encadernado)
Páginas: 204