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Depois que a 1ª Temporada de Lucifer terminou, minha atenção e expectativa voltaram-se completamente para Preacher, adaptação dos quadrinhos de Garth Ennis e Steve Dillon para a AMC e desenvolvida por Seth Rogen, Evan Goldberg e Sam Catlin. Assim como nos é apresentado em A Caminho do Texas, a história acompanha o misterioso pastor Jesse Custer (Dominic Cooper), um reverendo nada exemplar que não tem uma fama muito boa e nem um passado limpo, duas coisas deixadas em suspensão neste Piloto mas já com algum gostinho do que pode ser. Também temos a badass e antiga parceira de Jesse, Tulipa (Ruth Negga), o vampiro Cassidy (Joseph Gilgun), o intragável Xerife Hugo Root (W. Earl Brown) e o angustiante de se olhar Eugene Root ou Cara-de-Cu (Ian Colletti), com excelente maquiagem.
Como Piloto de série, este episódio cumpre com bastante sucesso aquilo que esperamos de qualquer início de trama: apresentação instigante e lógica do cenário e dos personagens. Neste ponto, enterro qualquer exigência de semelhança com os quadrinhos, exceto no ponto obrigatório para qualquer mudança de mídia: a essência. Logo, se temos mais diferenças do que semelhanças na forma como a trama acontece nas HQs e na TV, ficamos espantados o quanto da essência do material original esse capítulo nos trouxe, e isso vale tanto para o enredo em geral quanto para os três personagens centrais da história, Jesse, Tulipa e Cassidy.
Um dos meus grandes temores residia no ator Dominic Cooper escalado para viver o pastor Jesse Custer. Como não considero o ator um profissional exatamente brilhante, havia o medo de que ele fosse estragar o personagem, que é complexo, cínico e sério ao mesmo tempo. Esses temores, porém, foram se dissipando ao longo do episódio quando percebi que o roteiro dava espaço à insanidade típica da série original e, vivendo bem nesse universo, estava Dominic Cooper, assumindo tons de atuação diferentes e realmente interpretando esses momentos de forma competente. Não há dúvidas de que o ator conseguiu entender Jesse e capturou sua essência.
Tulipa foi uma das mudanças em relação aos quadrinhos (falo exclusivamente da apresentação da personagem no primeiro arco) que mais me impressionaram e agradaram. Enquanto no original ela vai compassadamente ganhando profundidade e periculosidade, neste Piloto ela é apresentada em uma das melhores cenas e já em plena ação. Em outra ponta temos o vampiro Cassidy, que assim como nas HQs, não recebe nenhuma aura de espanto ou tratamento especial “só porque ele é… uh… oh… um vampiro”. Na minha leitura, aqui ele está limpo demais e… ativo demais, mas isso não quer dizer que essa versão é ruim, isto é apenas um dado de percepção versus expectativa. Gosto do trabalho do ator Joseph Gilgun e, assim como Tulipa, ele nos é apresentado em uma ótima cena de ação.
Ao estabelecer o cenário — a direção de Seth Rogen e Evan Goldberg valoriza a geografia urbana e natural, adicionando um perfeito tom de faroeste à história, assim como nos quadrinhos — e os principais personagens, o roteiro começa a dar sentido ao conflito, que até então era um mistério. Na abertura, vemos Gênesis (a Entidade de luz-e-trevas) fugir de um determinado ponto no Espaço Sideral (nos quadrinhos, um lugar do Paraíso). Essa Entidade atravessa o nosso Sistema Solar e vem parar na Terra, até onde sabemos, em três lugares; um no Chade, um na Rússia e outro nos Estados Unidos. Não há qualquer tipo de pé atrás do roteirista em mostrar diferentes modelos de igrejas (duas cristãs de diferentes denominações e uma satanista) e trabalhar com muito humor algo que é tenebroso, afinal, os possuídos pela Entidade simplesmente explodem! A piada com Tom Cruise, vindo da ligação do ator com a Igreja da Cientologia, me fez rir com gosto nesse bloco.
Até o momento em que Jesse recebe Gênesis em seu corpo, temos um texto que cumpre bem o seu propósito. É natural que em um piloto tenhamos muitas pontas soltas para que os produtores possam retomá-las no futuro. O que ocorre, porém, no final, é uma rápida e estranha mudança de tom no roteiro acompanhada de uma elipse temporal maluca, mostrando Tulipa e Cassidy não mais na igreja mas em outros lugares, algo que não era necessário. E embora eu entenda a “remissão” e promessa de Jesse em ser um bom pastor — especialmente agora, que ele tem o dom da Palavra — há muito didatismo e entrega naquela cena, algo bem diferente de todo o restante do episódio. Mesmo com uma boa atuação de Cooper e mesmo não se trazendo linhas ruins no texto, é no todo que ela perde força e abre espaço para ser questionada. O término com os dois homens que também apareceram no Chade e na Rússia nos deixa a pergunta sobre quem são: dois anjos Adelphi ou a versão da série para o Santo dos Assassinos?
Preacher começa mostrando para o espectador que realmente possui identidade, fugindo dos clichês e utilizando-se muito bem da insanidade dos quadrinhos para expor coisas nunca ou pouco vistas na TV. O formato narrativo, a divisão dos blocos em sequências quase cinematográficas, a opção por fazer com que tudo convergisse para um único ponto e, a partir daí, começar verdadeiramente a história são exemplos de que a série pode sim ter um excelente futuro, pois, além de bom conteúdo, tudo indica que terá boa condução.
Ainda sobre a técnica, gostaria de destacar rapidamente 5 cenas do episódio. A primeira, muito boa, é a apresentação de Tulipa tentando assassinar um homem e dirigindo um carro no meio de um milharal. Há ecos cômicos de Sinais (2002) e uma maravilhosa sequência de eventos, com destaque para a bela cena em que Tulipa constrói, junto com as crianças, uma “bazuca artesanal”. Meu único ponto nessa sequência está na verossimilhança (o pai das crianças não voltou mesmo para casa?), mas isso não teve tanto peso para o episódio, então é possível relevar.
A segunda cena é a ótima apresentação de Cassidy no avião, onde se destaca a trilha sonora, cujo papel é primordial em dar o ritmo da montagem e, mais uma vez, a fotografia. Ao contrário dos tons quentes e de aparência plástica na apresentação de Tulipa, temos no avião a austeridade do preto e do branco e um jogo de claro-escuro que confere extrema elegância a uma sequência bizarra e cômica ao mesmo tempo, com ecos de Apertem os Cintos… o Piloto Sumiu e Mary Poppins, no final.
A terceira cena, que é excelente, é a verdadeira apresentação de Jesse, na briga de bar, uma referência clássica às lutas de Saloons dos faroestes e com ecos de Uma Cidade Que Surge (1939). A paleta de cores aqui tem aparência claustrofóbica, o desenho de produção nos indica marrom como cor primordial, mas o efeito do neon vermelho cria uma atmosfera macabra e perfeita para o que acontece em seguida. De todas as cenas, esta é a mais bem dirigida (minha tendência era gostar mais da cena do avião, mas a câmera absurdamente inquieta me incomodou, ainda que eu entenda a necessidade dos diretores em fazer três grandes brigas com formatos de direção — e montagem — diferentes) e a que melhor contextualiza Jesse para o público. Agora sim sabemos com quem estamos lidando: um homem que tem luz e trevas dentro de si, daí a justificativa para que a Entidade tenha se adaptado tão bem a este novo corpo, visto que ela própria era uma “nova ideia”, a bondade e a maldade juntas.
A quarta e quinta cenas são dois outros bons momentos: a chegada da Entidade na igreja de Jesse (fotografia, mais uma vez, exemplar; direção simples, mas eficiente e montagem pontualíssima) e, para terminar, o horror cômico do filho abrindo o coração para a mãe.
Começa aqui a jornada de um pastor, de um vampiro e uma pistoleira em uma realidade onde Deus é ausente e preconceitos de todos os tipos, bullying, miséria, estranhos fetiches e muita crueldade vivem de mãos dadas e estão esperando qualquer fiel em qualquer esquina. Pois é. Parece que, assim como a Entidade, chegamos mesmo no Texas. Que Deus nos ajude. Será uma conturbada estadia.
Preacher – 1X01: Pilot (EUA, 22 de maio de 2016)
Desenvolvimento: Seth Rogen, Evan Goldberg, Sam Catlin (baseado em obra de Garth Ennis e Steve Dillon)
Direção: Seth Rogen, Evan Goldberg
Roteiro: Sam Catlin
Elenco: Dominic Cooper, Ruth Negga, Joe Gilgun, Lucy Griffiths, W. Earl Brown, Anatol Yusef, Tom Brooke, Derek Wilson, Ian Colletti
Duração: 63 min.