É bem possível – e perfeitamente compreensível por razões óbvias – que o nome de Larry McMurtry ecoe na mente de muitos como o roteirista de filmes como A Última Sessão de Cinema, Laços de Ternura e O Segredo de Brokeback Mountain, mas poucos lembrarão que os dois primeiros longas citados são baseados em seus próprios romances, escritos em 1966 e 1975, respectivamente. E menos gente ainda lembrará que o escritor americano falecido em 25 de março de 2021, foi um prolífico autor de obras eminentemente de faroeste, tendo construído sua ilustre carreira justamente a partir desse gênero, quando, em 1961, publicou Horseman, Pass By, que foi adaptado para o cinema como O Indomado, longa de 1963 estrelado por Paul Newman.
Talvez seu livro mais conhecido – certamente é o mais prestigiado em razão do Prêmio Pulitzer que o autor ganhou em razão dele – seja Pra Lá do Fim do Mundo, um título brasileiro peculiar, mas apto, para Lonesome Dove, de pegada muito mais “romântica”, que ele lançou em 1985 e que foi adaptado na forma de minissérie e que foi seguido de três outras obras no mesmo universo – uma continuação e dois prelúdios – que receberam o mesmo tratamento televisivo. Situado temporalmente no final do chamado Velho Oeste, cinco anos após o fim da Guerra Civil, com as histórias de desbravamento e pistoleiros já ganhando verniz de mitologia, o romance lida com uma longa jornada, do vilarejo de Lonesome Dove (Pomba Solitária), na fronteira do México com o Texas, até o então ainda “selvagem” território de Montana, empreendida por um grupo de caubóis levando um rebanho roubado para estabelecer o primeiro rancho ao norte do Rio Yosemite.
A abordagem de McMurtry é lenta e muito cuidadosa na forma como ele estabelece os personagens, notadamente Augustus “Gus” McCrae e Woodrow F. Call, dois ex-Texas Rangers que se tornaram vaqueiros e têm um pequeno rancho. A vida dura, mas pacata dos dois e daqueles que trabalham com eles muda com a chegada de Jake Spoon, outro ex-Ranger amigo da dupla que sumira há 10 anos e que conta que é procurado por assassinato e descreve o território inexplorado ao norte como o paraíso na Terra, incitando seus amigos a iniciar a longa marcha. Se o objetivo de Jake é ao mesmo tempo fugir e continuar vivendo suas aventuras, os de Gus e Call são bem diferentes, com a jornada, claro, tornando-se uma de autodescoberta, de revisão do passado e de tentativas de corrigir erros. Os demais componentes do grupo, que aos poucos vai crescendo em razão de encontros inesperados, também têm suas próprias pequenas histórias paralelas, com a jovem Newt Dobbs sendo uma de iniciação, de amadurecimento, ao passo que a de Bolívar, um ex-bandido mexicano que agora é cozinheiro, funciona mais como uma forma de ele transmitir conhecimento e sabedoria.
Ao longo do épico, McMurtry introduz novos personagens com a mesma calma com que introduz o grupo original e cria narrativas paralelas que vagarosamente convergem e criam uma história macro que lida com honra, amores novos e antigos, mudanças de vida, incapacidade de alguns de se adaptar aos novos tempos, lealdade, traição em uma vasta gama de situações que ceifa vidas, altera outras para sempre e emociona o leitor ao longo da estrutura propositalmente de queima lenta que emula o tempo que leva para o grupo completar a jornada, com todos os devidos desvios pelas mais diversas razões ao longo do caminho. Não é um romance de ação, ainda que inevitavelmente haja diversos momentos tensos, especialmente no que se refere a Pato Azul, o bandido Cherokee que pode ser considerado como o grande antagonista e que pode fazer muitos revirarem os olhos por ser um nativo vilanizado, por assim dizer, ainda que seja um personagem histórico e que o romance seja da década de 80, antes da abordagem mais politicamente correta – e por vezes necessária – tomar conta de boa parte das obras novas.
Seja como for, não se deixem enganar por alguns que acham que Pra Lá do Fim do Mundo romanceia a vida dos vaqueiros, pois trata-se de um faroeste de abordagem claramente revisionista, que desconstrói muitos dos mitos dos invencíveis heróis de chapéu de vaqueiro e pistola na cintura com mira infalível. McMurtry humaniza seus personagens, torna-os falhos e os faz olhar para trás em um processo profundo de reconhecimento de erros e de tentativa de expiação de pecados que por muitas vezes lembra obras como Os Imperdoáveis. Call representa o homem quieto, fechado, mas ao mesmo tempo inquieto e desejoso por ação, por manter-se em movimento, enquanto que Gus – que pode ser chamado de protagonista, se for necessário eleger apenas um nome – hesita em aceitar essas mudanças, mas percebe o valor da jornada ao notar o quanto ela pode servir para ele desfazer arrependimentos do passado. Mas o perigo vem de todos os lados e é particularmente fascinante como McMurtry ceifa vidas de maneiras que poderíamos considerar banais, mas que faziam parte desse cotidiano em uma terra desregrada.
Apesar de ser um romance muito longo, a leitura é imersiva para quem apreciar o passo lento, mas cadenciado da narrativa que se perde em descrições alongadas das paisagens e cidades por onde os personagens passam, além da inserção das mencionadas histórias paralelas que ganham relevo na medida em que se avança na longa jornada. Por outro lado, é curioso como McMurtry parece acelerar o passo ao final, quase como se ele tivesse percebido, talvez tarde demais, que não poderia continuar escrevendo nesse mesmo ritmo até o fim. Com isso, ele acaba gerando uma certa estranheza que resolve em relativamente poucas páginas – em alguns casos poucos parágrafos até – pontas narrativas importantes, que fazem parte da infraestrutura de sua obra. Não é algo que desabone o resultado final, mas, apenas, uma freada razoavelmente brusca e uma quase que literal reversão de caminho que ganha um caráter de fechamento necessário mais do que o fechamento que a obra pedia.
Mesmo decepcionando um pouco em sua “chegada”, Pra Lá do Fim do Mundo é um faroeste epopeico viciante, que faz o leitor mergulhar em um mundo solitário, mas ao mesmo tempo comunitário; vazio de pessoas, mas cheio de vida; lindo, mas assustador e atraente, mas extremamente perigoso, em que o passado condena, o presente serve para rever esse passado e tentar corrigir o curso de uma vida e o futuro é apenas um sonho impossível. Larry McMurtry talvez tenha escrito o faroeste definitivo, mas, mesmo que não tenha, dentro desse gênero tão explorado em todas as mídias, sua obra merece todo o destaque que teve e que deveria continuar tendo.
Pra Lá do Fim do Mundo (Lonesome Dove – EUA, 1985)
Autor: Larry McMurtry
Editora original: Simon & Schuster
Data original de publicação: 1985
Editora no Brasil: Best Seller
Data de publicação no Brasil: 1987
Tradução: ?
Páginas: 858