A figura do lobisomem, pela própria nomenclatura, está constantemente associada aos homens. A mulher neste segmento é um caso remoto, com poucas aparições, quando falamos de cinema. Além da Trilogia Ginger Snaps, erroneamente chamada de Possuída aqui no Brasil, temos SheWolf of London, terror de 1946 que flerta com a personagem numa versão feminina, destaque num cenário majoritariamente masculino. No começo de 2020, numa das passagens por revistas e trabalhos acadêmicos, descobri uma tese de doutorado defendida na Universidade Federal de Uberlândia intitulada Projeções do Lobisomem na Literatura, de autoria da pesquisa Jamille Santos, trabalho que se destacou em minha travessia por novidades ao trazer informações bastante relevantes sobre a presença da mulher neste segmento, tratada como “lobismulher”, termo que traz alguma estranheza, mas segundo o texto, é uma das nomenclaturas ideais deste personagem raro e com arquegenealogia vaga quando o foco é entendermos o seu lugar na história deste mito. Ao citar dados de seu levantamento bibliográfico, a autora alega que há menções na cultura irlandesa sobre a licantropia envolvendo uma mulher de nome “Conoel”, algo disperso demais para permitir afirmações mais contundentes. Há também, na China, a mãe de um general que após os setenta anos de idade, teria se transformado numa loba, além de menções na cultura africana, onde acreditava-se que a transformação vinha como forma de penitência que durava sete anos, geralmente para mulheres que tinha cometido algum crime.
Resgatei esse panorama de algumas anotações porque geralmente as figuras acometidas pela licantropia no cinema são masculinas, o que não ocorre em Possuída, lançado em 2000 aqui no Brasil, produção canadense que possui um amplo público cativo em circuitos mais específicos de cinéfilos e amantes de narrativas sobre lobisomens. Sob a direção de John Fawcet, cineasta que transforma em audiovisual o próprio argumento e roteiro, escrito numa parceria com Karen Walton, a produção nos apresenta o cotidiano macabro das irmãs Ginger (Katharine Isabelle) e Brigitte (Emily Perkins), dupla emocionalmente conectada, garotas que atravessam uma nova fase de suas vidas, repleta de mudanças drásticas com chances de um desfecho nada agradável. Obcecadas pela morte, elas parecem personagens do dramaturgo Nelson Rodrigues. Adoram os extremos, flertam com ensaios fotográficos focados representações de cenas de morte envoltas em altas taxas de morbidez. Quando tinham apenas oito anos de idade, fizeram um pacto e prometeram que morreria juntas. Deu pra sentir a bizarrice? Pois assim é o dia das jovens que na escola, são tratadas com descaso e marginalizadas por conta de suas posturas “estranhas”.
Deslocadas, até mesmo em casa estas garotas sofrem do alijamento social que as circundam. Na trama que faz uma abordagem interessante sobre relações familiares, obsessões e contatos humanos, Ginger e Brigitte se sentem diferente de tudo que gravita em seu entorno. Ginger, mais valente e protetora, acolhe a mais frágil Brigitte, papeis que se revertem não apenas neste filme, mas nas continuações Possuída 2 – Força Incontrolável e Possuída – O Início, narrativas que propõem o retorno destas personagens em situações diferentes ao que se desenvolve aqui, no primeiro “momento” da trilogia. De volta ao filme: em seus 108 minutos, Possuída é uma vertiginosa montanha-russa de emoções aparentemente pueris, mas que revelam, por debaixo da superfície, uma poderosa e nem sempre compreendida camada de alegorias sobre a puberdade, pois o fenômeno da licantropia se estabelece na história juntamente com as trombetas da menstruação, ciclo natural que ainda não tinha se manifestado surge como obstáculo, repleto de incógnitas para essas garotas inteligentes, mas deslocadas em seus respectivos tempos e espaços.
Certa noite, as coisas mudam pra valer. Enquanto retornam de um passeio, Ginger e Brigitte são surpreendidas por uma força absurda que parte da região florestal à beira da estrada. A criatura, como sabemos, um lobisomem, é a mesma que tem atacado animais nas proximidades e deixado um indesejado rastro de sangue e morte com requintes de violência. Ginger é quem de fato sofre o ataque, jovem que consegue sobreviver com ferimentos e logo mais, desenvolverá hábitos da licantropia envoltos numa redoma de sexualidade exacerbada. Brigitte, antes mais quieta e contemplativa, personagem com relativa submissão diante da irmã mais corajosa, precisará unir forças para conter o comportamento de Ginger, inicialmente controlado, mas caminhando para uma onda de fúria sem precedentes, algo que não parece indicar um desfecho feliz para todos os envolvidos. Entre salvar a sua vida e proteger a irmã, Brigitte desenvolverá a sua personalidade e parte do design quase plano de sua figura para alguém esférico, cheio de camadas para ação e interpretação. E será no devir monstro de sua irmã que a garota vai forjar a sua nova identidade e abraça o protagonismo da narrativa, culminando num final emocionante.
Os aspectos visuais, também sabemos, são importantes para a construção da atmosfera de um filme sobre lobisomens. Esperamos, do design de produção, os uivos e demais manifestações sonoras anunciadoras do horror que é estar diante de um monstro com tal magnitude, não é mesmo? Pois ainda que tenha sido concebido com baixo orçamento, Possuída goza dos privilégios de ter uma equipe técnica eficiente, sábia ao transformar “palha em ouro”: a trilha sonora de Mike Shields não é uma obra-prima da partitura de horror, mas consegue manter a atmosfera de tensão equilibrada; na direção de fotografia, Thom Best permite que a equipe de efeitos visuais e especiais integrem animatrônicos sem que os truques sejam claramente perceptíveis e delineiem possíveis defeitos técnicos, aqui trabalhados também pelo inteligente uso do ponto de vista e da profundidade de campo que nalgumas passagens, nos transmitem uma leve sensação de perigo próximo, mas que observa as suas vítimas com distanciamento; a maquiagem de Paul Jones atende ao necessário e o design de produção de Todd Cherniaswsky consegue manter os personagens dentro de espaços que representam bem os seus perfis dramáticos, em especial, a casa das garotas, decorada excessivamente, toda em tons marrons e com luz propícia para contrastes.
Ainda sobre a estética, há trechos com uso de um filtro roxo na iluminação que deixam determinadas passagens com um tom opressivo, de angústia e medo. Ademais, ao mesclar a licantropia com o despontar da puberdade, o filme reflete os horrores de uma fase marcada por mudanças profundas nas estruturas físicas e psicológicas das mulheres, abordagem no campo dos lobisomens que aqui ganha uma leitura diferenciada dos padrões narrativos dentro deste segmento. Em sua transformação, Ginger sofre com os pelos, o desejo por sangue que não parece cessar, além do surgimento de caninos salientes e até mesmo o aparecimento de um rabo bizarro que indica a sua transformação de humana em monstro. Para somar o feixe de subtramas conectadas com a abordagem central, temos Trina (Danielle Hampton), a irritante colega de escola que se satisfaz às custas do bullying para aumentar a sua popularidade, Sam (Kris Lemche), jovem traficante da escola que atropela a criatura responsável pelo ataque a Ginger, Wayne (Peter Keleghan), professor que as repreende na apresentação de um trabalho em sala de aula com as mórbidas fotografias, Pamela (Mimi Rogers), a mãe coruja que supreendentemente ajudará as filhas no sangrento desfecho e Henry (John Bourgeois), o pai caladão das jovens, homem sem expressão dentro da casa dominada pelo feminino. Com maior ou menor destaque, todos esses personagens se relacionam com as garotas durante a travessia de seus conflitos dramáticos.
Possuída (Ginger Snaps/Estados Unidos/Canadá, 2000)
Direção: John Fawcett
Roteiro: Karen Walton, John Fawcett
Elenco: Emily Perkins, Katharine Isabelle, Kris Lemche, Mimi Rogers, Jesse Moss, Danielle Hampton, John Bourgeois, Peter Keleghan, Christopher Redman, Jimmy MacInnis, Lindsay Leese, Wendii Fulford, Ann Baggley, Graeme Robertson, Maxwell Robertson, Pak-Kwong Ho, Bryon Bully, Steven Taylor, Nick Nolan
Duração: 108 min