Saber da simpatia de longa data de Edward D. Wood Jr. por roupas femininas ajuda o leitor deste conto a encontrar um caminho de entendimento ainda mais crítico que este que ele nos coloca na hilária e aventuresca jornada de dois missionários por uma selva praticamente intransponível, com o objetivo de evangelizar pagãos e encontrar uma tal de “Rainha Branca”. No melhor estilo das tramas selvagens de Edgar Rice Burroughs, o conto nos mostra perigos imensos em um trajeto que beira o impossível. Guiados por nativos, por opiniões claramente racistas (e posteriormente homofóbicas) e por uma determinação infantil e mas intensa, os missionários também se deparam aqui com criaturas grandes e mortíferas, e tudo isso é exposto para o público numa narrativa simples, simpática e ao mesmo tempo muito engajante, o que me fez lembrar de um livro com praticamente a mesma abordagem geográfica (só que em outro planeta) e com o mesmo tipo de construção textual: Na Selva do Mundo Primitivo, de Kurt Mahr.
Este é um conto que facilmente poderia ter sido escrito por um autor-diretor como Woody Allen, por exemplo, e na verdade a maneira de de Ed Wood contar uma história é realmente bem similar à de Allen na literatura. A primeira parte do texto foca na criação do local explorado. A comédia, aí, é baseada no fato de dois homens brancos estranharem todos os aspectos do lugar em que estão. E costurando essa estranheza cômica temos lapsos de pensamento paternalista e preconceituoso em relação aos nativos, além de pequenas cenas — como as da alimentação — que mostram a grande diferença cultural entre eles e os nativos.
O texto não nos diz exatamente onde estamos, mas é absolutamente fácil de entender que é alguma região no coração do continente africano. Isso já é um bom caminho para a gente falar do processo de cristianização de povos e também focar no verdadeiro objetivo dos missionários, que a tiracolo carrega uma baita pergunta que não é respondida: como um território tão impossivelmente isolado e povoado por pessoas negras pode ser regido por uma Rainha Branca?
O ato final, o choque dos missionários e o que se segue a partir do momento em que eles descobrem quem é a tal da Rainha Branca é a piada final, e evidentemente é bastante efetiva. O autor expõe sem meias palavras a sua visão sobre o ato crossdresser e, em vez de responder as perguntas imediatas, finaliza a narrativa com um hilário cinismo que é melhor do que qualquer resposta que ele tivesse dado. Ah, se houvesse uma continuação para a gente saber qual foi a narrativa dos missionários para a população quando eles retornaram para os Estados Unidos! Mas pensando bem… é difícil saber se eles verdadeiramente conseguiram sair da selva, não é mesmo? Porque saíram correndo desembestados pela mata sem se preocupar com os guias. Pela postura absurda que tiveram, certamente encontraram o que mereciam nas presas de algumas víboras pelo meio do caminho.
Blood Splatters Quickly: The Collected Stories — (Estados Unidos, novembro de 2014)
No Brasil: Contos & Delírios (DarkSide Books, 2022)
Publicação original: Missionary [Position] Impossible, 1971
Autor: Edward D. Wood Jr. (Ed Wood)
Tradução: Carlos Primati
Ilustrações: Laerte
8 páginas