Roger Scruton é um dos nomes mais importantes do pensamento conservador britânico. Sua vasta obra trata de temas muito caros à tradição filosófica do ceticismo, cuja aurora pode ser localizada em nomes como David Hume e Edmund Burke, se pensarmos apenas no conservadorismo inglês. Um dos territórios mais notáveis que Scruton visita em sua obra são as artes e, embora eu muito o admire enquanto filósofo político, penso que nessa ramificação de seu pensamento ele comete tanto acertos como grandes erros. Um popular documentário, lançado em 2009 e apresentado por ele, é um ataque ferino do britânico à arte contemporânea e sua progressiva depauperação, segundo ele. Por Que A Beleza Importa?, contudo, acaba se perdendo em um discurso enviesado, repleto de afirmações reducionistas e que acabam amputando a arte de sentidos muito maiores que o conceito restrito de beleza que ele apresenta.
Não nego, nem por um milésimo de segundo, que a arte contemporânea produza obras absolutamente esdrúxulas – frutos podres de auto-denominados artistas sem nenhuma criatividade ou substância. Há sim “arte” vazia, pobre de significados e que deseja apenas chamar atenção. Scruton cita a lata de excrementos, exposta como obra de arte em um museu. Sem dúvidas, ali há apenas um artista pretensioso tentando gritar ao mundo sua inépcia criativa e sua falta de talento. Curiosamente, Mario Vargas Llosa cita exemplo semelhante em A Civilização do Espetáculo (essa sim uma obra lúcida e muito mais bem argumentada que o documentário de Scruton). O peruano relembra o caso de fezes de elefante expostas em um museu britânico. Concordo com o exemplo de ambos, mas esclareço que o problema aqui não é a mera escatologia presente nessas obras. Saló ou 120 Dias de Sodoma, de Pasolini, por exemplo, as supera facilmente nesse quesito sem que isso desabone o filme do italiano enquanto obra de arte. Mas há uma diferença fulcral entre os dois primeiros exemplos e o terceiro.
A obra de Pasolini faz das intermináveis sevícias impingidas aos jovens um meio de comunicar uma ideia – o mundo, quer desejemos ou não, é um triturador de gente. Toda a construção cinemática do filme favorece a comunicação desse princípio, como demonstrei em minha crítica. Mas em relação às obras mencionadas por Scruton e Llosa, podemos nos questionar: qual o sentido estético delas? O que elas comunicam além da literalidade de fezes expostas? Não há sentidos escondidos (na verdade, não há nem na superfície) que possamos apreender de obras como essas. Outro exemplo que Scruton cita é o de uma sala em que uma luz se acende e se apaga continuamente. A pergunta permanece: qual o sentido disso, além de uma luz que literalmente se apaga e se acende? A arte necessita transcender a literalidade e construir um sentido estético, isto é, um sentido veiculado por sua linguagem. Estou de acordo, portanto, que muitos artistas contemporâneos constroem uma arte emudecida de significados, mas verborrágica em sua forma, afinal, quem nada tem a comunicar jamais seria ouvido se não vociferasse seus ruídos ininteligíveis. Entretanto, minhas concordâncias com Scruton acabam por aqui.
Em primeiro lugar, o documentário esbarra em um erro bastante primário, que é fazer seu espectador acreditar que a história da arte sempre foi constituída de grandes artistas, à exceção dos nossos tempos. É possível mesmo acreditar que não havia maus artistas em todos os períodos? Não terá sido a decantação do tempo que os fez esquecidos? Não deverá acontecer o mesmo com os artistas da lata de excrementos e da lâmpada que acende? O documentário ignora tudo isso e o faz por mera conveniência, já que tenta construir um discurso reto e monolítico sobre um tema muito mais complexo. Outra desonestidade intelectual de Scruton é a de retirar de seu contexto um trecho de uma entrevista de Marcel Duchamp. O breve recorte (novamente feito por conveniência discursiva) não explica que o famoso Urinol do artista francês foi uma obra cujo sentido estético (sim, ela tem) está inserido em seu tempo – o despertar do século XX e a desconfiança do homem sobre o sentido da existência em um mundo cada dia mais mecanizado e alienado. A peça transformada em arte debocha do próprio homem moderno, com suas criações cada vez mais esvaziadas de sentido. É decepcionante ver Scruton em uma cruzada para transformar Duchamp em um vanguardista da decrepitude da arte.
O filósofo britânico parece querer congelar a arte no tempo e, paradoxalmente, reivindica a existência de criatividade no fazer artístico. Ora, pois foi exatamente a criatividade que levou Duchamp a exibir sua obra mais conhecida no início do século XX. Não há como cobrar criatividade e imaginação de artistas e não lhes permitir o resultado mais óbvio de tudo isso – a existência salutar e necessária de rupturas. São elas que movimentam a arte e não há como enterrar em vala comum os bons vanguardistas e os artistas sem qualquer talento. Isso vale para qualquer tempo, por mais que Scruton tente enaltecer apenas obras como o Davi, de Michelangelo, enquanto um violoncelo executa a primeira suíte de Johann Sebastian Bach (pedantismo que se repetirá na conclusão do documentário, quando um pequeno grupo de câmara interpreta Stabat Mater, do barroco italiano Giovanni Pergolesi).
Não farei críticas extensas à afirmação do filósofo de que a arte aspira a Deus, nem à conexão forçada disso com Platão (que vivia em uma Grécia politeísta e, portanto, muito distante da concepção cristã de Deus que Scruton utiliza). Também me privarei de tratar longamente das cenas em que o pensador inglês aparece em campos verdejantes, contemplando o horizonte com olhar de grande sábio. Todas essas bobagens são quase auto-evidentes e, assustadoramente, me lembram a estupidez da auto-ajuda. Um espectador mais atento descobrirá com facilidade o tom embusteiro do inglês nesses momentos. Não nos preocupemos com eles.
Prefiro tratar de mais um ponto muito mal abordado em Por Que A Beleza Importa?. Uma das afirmações, veladas ou não, que o britânico faz é a de que a arte se empobreceu de técnica e, assim, tornou-se menor. Não vejo relação necessária entre um ponto e outro, afinal, uma obra de arte pode atingir um senso estético brilhante mesmo com fundamentos técnicos reduzidos. Não é exatamente isso que Samuel Beckett fez em seu teatro, por exemplo? Um de seus textos mais encenados – Companhia – trata simplesmente de um homem deitado no escuro. Em termos teatrais, nada poderia ser mais minimalista e condensado. Poderíamos pensar ainda mais perto de nós. Qual o grande apuro técnico de poemas como “Amor / Humor”, do brasileiro Oswald de Andrade? Mas o modernista paulistano obteria o mesmo efeito de surpresa e de bom humor se não tivesse escrito seu poema exatamente como o fez? É preciso entender que a arte não se curva a ditames e fórmulas prontas e é exatamente isso que a empobreceria irreversivelmente, ao contrário do que diz Roger Scruton.
O ponto central de minha crítica a Porque A Beleza Importa? vai ao encontro de uma diferença essencial entre sentido estético e beleza. A arte não precisa ser bela, embora também possa sê-lo, mas ela precisa ter como pilar um sentido estético. Que possamos sim admirar uma escultura de Michelangelo ou um soneto de Shakespeare, que buscam a beleza enquanto sublimação do homem em sua forma e em seu espírito. Mas que possamos apreciar os desacertos e as dissonâncias dos últimos quartetos de corda de Beethoven e também a pintura desequilibrada de Pollock e anti-paisagista de Mondrian. Afinal, uma existência tão complexa como a humana compõe-se também de territórios nebulosos, onde existe a feiura, a mácula e a incompreensão.
Por Que A Beleza Importa? (Why Beauty Matters) – Reino Unido, 2009
Direção: Louise Lockwood
Roteiro: Roger Scruton
Elenco: Roger Scruton
Duração: 60 minutos.