Momentos de grande polarização de opinião e crescimento de uma visão de massa que valoriza mais a punição definitiva do que a aplicação da lei não são uma novidade para a maioria dos países, principalmente os que de alguma forma estiveram envolvidos nas alfinetadas e embargos estatais que pulularam durante a Guerra Fria. Em ocasiões assim, tanto a História factual quanto a literatura ficcional e as lendas históricas acertam na representação de uma coisa: a realidade dos conflitos de interesse e os inúmeros acordos de bastidores que fizeram muito melhor ao mundo do que a opinião geral que os países em contenda deixavam transparecer para a mídia. É isso que vemos em Ponte dos Espiões (2015), obra de Steven Spielberg baseada em fatos que mapeiam o triângulo ideológico entre o advogado James B. Donovan (Tom Hanks), o “espião russo” Rudolf Abel (Mark Rylance) e o aviador americano Francis Gary Powers (Austin Stowell).
Diferente do que o roteiro possa sugerir aos desavisados, Ponte dos Espiões não é o tipo de drama ágil e repleto de fugas, planos ocultos e traições governamentais ou mercenárias que os filmes do gênero acabaram popularizando. Em essência, não é um filme de espionagem. No primeiro ato, o roteiro de Matt Charman (revisado pelos irmãos Coen, portanto, já sabemos de onde veio a toada cômica que perfura o drama) nos faz conhecer o personagem de Tom Hanks e daí surge uma série de discussões envolvendo patriotismo, anticomunismo e condições jurídicas abraçando um momento político onde espionagem não era uma novidade para nenhuma das potências em luta na Guerra Fria. Em toda essa primeira parte — a melhor do filme –, entendemos o caráter de tribunal e de construção de personagens, que são a essência da obra.
Sob representação ou alteração de fatos históricos para caber melhor às pretensões cinematográficas do diretor (nenhum problema aí) somos constantemente convidados a também julgar atitudes de alguns personagens, recurso hábil do roteiro que trata a todos com um nível de humanidade compatível com o cargo que ocupam, sem demonizar escandalosamente o “inimigo vermelho” ou santificar inteiramente os “bravos defensores da democracia e da justiça”. Os tons de cinza entre os extremos políticos aqui são uma realidade no texto desde o início e também recebem o devido tratamento na fotografia dessaturada de Janusz Kaminski — vencedor do Oscar por A Lista de Schindler (1993) e O Resgate do Soldado Ryan (1998) –, plasmando com cores frias esse mundo de constante atenção, medo e perseguição, onde o inimigo poderia estar na porta ao lado e os acordos políticos dos quais as pessoas não tinham nenhum conhecimento decidiam o destino de todos. A cor em Ponte dos Espiões serve quase como uma justificativa locacional para o pensamento de alguns personagens.
Em contrapartida, o roteiro de Charman e dos Coen usa principalmente a opinião do personagem de Tom Hanks um foco de luz mais intensa em meio a tudo. Claro, chega a ser romântico o tratamento, mas isso não incomoda em nada na primeira parte. Já na segunda, o texto se quebra em pesos muito diferentes, vide os momentos da prisão de Powers na URSS, que não têm nem de perto o apelo pretendido; e os pequenos dissabores de Donovan em Berlim Oriental, momentos que deveriam servir de marca mais instigante na fita, mas isso não acontece. Aliás, há até um pouco de distração nesse espaço, com a montagem indo dos dramaticamente bons (mas angustiantes) momentos de burocracia do Estado comunista e negociações para a troca dos prisioneiros até os takes desses homens em suas respectivas celas. Algumas dessas cenas são ajudadas pela trilha econômica e sombria de Thomas Newman, mas não a ponto de sustentarem a obra com a mesma força que tivera no bloco anterior.
Tom Hanks e Mark Rylance são as pérolas do elenco. Hanks toma para si toda a atenção ao mostrar a face um cidadão cujo entendimento do que é “ser americano” não está marcado por um patriotismo cego. A seriedade e grande atenção que seu personagem demanda, porém, tem um fortíssimo concorrente aqui. E vejam que chamar a atenção em um filme com Tom Hanks em um grande papel não é algo fácil. Contudo, Mark Rylance está absolutamente magnético aqui. Nosso olhar não desgruda do ator, e suas expressões de (pretenso?) medo ou despreocupação são tão enigmáticas que chegam a angustiar. Pois bem, é justamente por construir tão bem um homem difícil de ler que o ator se destaca grandiosamente. Notem que os figurinos aqui pendem para a extrema seriedade, na aba da sobriedade dos anos 50, igualmente exposta pela direção de arte na fita, acompanhando os diálogos e expressões da dupla principal. Mas há um tom cômico e até mesmo emotivo por parte de Donovan (em sua preocupação com o que vai acontecer com o prisioneiro ou em salvar o estudante Frederic Pryor, personagem de Will Rogers) e de Abel que ultrapassa qualquer caminho mais exato que o roteiro ou a malha estética tenham pensado em sugerir.
Steven Spielberg usa a sua grande habilidade de criação de múltiplos significados para as cenas e faz de Ponte dos Espiões um filme sobre ideias em disputa em um período de guerra não declarada. Se o roteiro cede mais a facilidades na parte final, Spielberg não deixa a bola cair (mesmo quando evoca a imagem de cidadãos tentando pular o Muro de Berlim, através de um visão de Donovan, pela janela do trem, para jovens pulando um alambrado). O diretor cria excelentes condições cênicas para o destaque de seus personagens centrais e seu ritmo e movimento deixam suaves até mesmo os eventos mais tensos, um bônus de “beleza na tragédia” que muitos espectadores não gostam — mas que é impossível não admirar como resultado técnico dessa característica do diretor, entregando neste longa uma visão política, jurídica, ideológica e humanitária de um episódio onde um bom argumento foi a principal arma para fazer com que a Guerra Fria permanecesse fria.
Ponte dos Espiões (Bridge of Spies) — EUA, 2015
Direção: Steven Spielberg
Roteiro: Matt Charman, Ethan e Joel Coen
Elenco: Tom Hanks, Mark Rylance, Domenick Lombardozzi, Victor Verhaeghe, Mark Fichera, Brian Hutchison, Joshua Harto, Henny Russell, Rebekah Brockman, Alan Alda, John Rue, Billy Magnussen, Amy Ryan, Jillian Lebling, Noah Schnapp, Eve Hewson, Joel Brady, Austin Stowell, Michael Pemberton, Max Mauff
Duração: 141 minutos.