Uma das coisas mais comuns que se sabe a respeito da poesia — e isso é até um senso comum a respeito do gênero literário — é que acima de tudo, ela é para ser sentida. Claro que a habilidade do poeta em usar a palavra e o ritmo para gerar sentimentos é algo a ser considerado e isto fará toda a diferença na experiência de quem tem contato com a poesia. Mas é este sentimento, no fim das contas, que vale. E não há nem o que discutir em relação ao poder deste produto final: cada ouvinte, cada leitor e espectador terá uma vivência diferente e será tocado de diferentes maneiras pela obra poética. Esta é, evidentemente, a base para a apreciação de qualquer arte, mas quando estamos diante de filmes assumidamente poéticos, feitos por um cineasta que também é poeta, como Alejandro Jodorowsky, há muito mais a ser considerado, notado e sentido.
Poesia Sem Fim (2016) é o segundo de uma série de longas que o diretor se propôs a fazer sobre a sua vida, começando em 2013 com A Dança da Realidade, que terminou com a saída de sua família da cidade de Tocopilla, no norte do Chile, para Santiago, seguindo aqui com a chegada dos Jodorowsky à capital do país, avançando pelo crescimento do filho, sua descoberta da poesia, do amor, da decepção artística (mais pelo sonho de querer romper barreiras do que pelo reconhecimento, já que o autor era um dos nomes que ebuliam na cena artística chinela, nos anos 1950), até a sua partida para a França, em 1953, em parte motivada pelo desgosto político de ver o Chile novamente governado por Carlos Ibáñez del Campo.
Mais aberto a experiências estéticas e conceituais, pois retrata a juventude do personagem, Poesia Sem Fim é um grito de liberdade, mostrando o que uma alma artística pode fazer quando colocada em um lugar diferente daquele que a aprisionava (me lembrou bastante um filme sobre outro artista fora de seu meio, Que Viva Eisenstein! – 10 Dias que Abalaram o México). Desde que cortou a sua árvore genealógica — em uma simbólica cena onde “Alejandrito”, ainda interpretado por Jeremias Herskovits, dá machadadas em uma árvore no quintal da avó, rompendo com diversos lanços familiares ao mesmo tempo e sendo então levado pelo primo para um lugar que o mudaria por completo — Alejandro encarou a arte como uma constante fonte de prazer, um lugar de descobertas onde ele deveria permanecer, amar e ser amado.
Ao longo do filme temos vivo um elemento convidativo da arte diante do artista, que paira através de uma fotografia sempre buscando pontos fortes de luz e cores quentes na direção de arte ou figurinos, mesmo nas cenas trágicas e fases de tristeza de alguns artistas, como as bebedeiras de Enrique Lihn, a separação entre Jodorowsky e poetisa Stella Díaz Varín ou o momento de suposto “conformismo criativo” de Nicanor Parra, o poeta favorito do diretor na época. Através de explosões de vermelhos, passagens por cômodos e peças verdes nos momentos de contemplação e contrastes melancólicos de azul no Café Iris (além das belas cenas de nudez), seguimos o protagonista em sua busca por querer romper com tudo aquilo que seu pai lhe negara. E então vem a insatisfação. Seus amigos e o meio poético do qual fazia parte não mais alimentavam o seu desejo de crescer. Era preciso algo mais.
Diferente de A Dança da Realidade, temos aqui transformações interessantíssimas dos personagens. É uma pena que Jaime (Brontis Jodorowsky), que passara por uma transformação tão grande no final de A Dança…, volte a ter um comportamento tão autoritário e odioso neste Poesia…, tendo particularmente fixado seus esforços em combater uma possível homossexualidade do filho. Isso marca Alejandro de tal maneira, que ao ser beijado por Ricardo e não sentir nada, comemora o fato de não ser gay e, mesmo à distância, lembra ao pai que “ele não era aquilo”. Essa marca de convivência, esta construção imposta e esse medo que ataca a pessoas em inúmeros círculos sociais é que darão ao Alejandro adulto (Adan Jodorowsky) — tanto Brontis quanto Adan são filhos de Jodorowsky e, além deles, há também outros membros da família trabalhando na produção — a grande vontade de fazer diferente, embora ele não soubesse por onde começar. A poesia, apenas, não respondia mais a todos os seus anseios.
Com pequenas rusgas narrativas — a resolução do arco de Jaime e Sara não é plena — e uns poucos problemas de montagem no meio da fita, especialmente nas cenas do Café Iris, Poesia Sem Fim é uma obra sobre a introdução de um artista àquilo que viria a ser a sua arte. O resultado é belo e tocante de diferentes maneiras, fazendo-nos lembrar de descobertas próprias, de pontos sem retorno, de tomadas de decisão que definiriam quem seríamos no futuro. Como deve ser uma boa e infinita poesia, a película expõe com a devida força a juventude de um artista em um tremendo espetáculo visual, cheio de significados. Alejandro Jodorowsky prova de falar de si mesmo, com fantasia e exageros, é também um bom caminho para fazer cinema de relevância artística e de significados para além de sua própria fonte.
Poesia Sem Fim (Poesía sin fin) — Chile, França, 2016
Direção: Alejandro Jodorowsky
Roteiro: Alejandro Jodorowsky
Elenco: Alejandro Jodorowsky, Adan Jodorowsky, Brontis Jodorowsky, Leandro Taub, Pamela Flores, Jeremias Herskovits, Julia Avendaño, Bastián Bodenhöfer, Carolyn Carlson, Ali Ahmad Sa’Id Esber, Kaori Ito, Carlos Leay, Hugo Marín
Duração: 128 min.