“Deus nos proíba de perdermos as ancestrais tradições chinesas de culpar nossos filhos.”
O tradicionalismo é um dos principais assuntos abordados em Podres de Ricos, comédia romântica importante para uma indústria de vários padrões. A produção, embora norte-americana, apresenta um elenco majoritariamente sino-americano, representação raríssima em um cinema, por exemplo, de constante whitewashing, mesmo que a presença asiática em território estadunidense seja estrondosa. O longa-metragem charmosamente conversa sobre a quebra de tradições, ao mesmo passo que se mantém em certas tradições, para evidenciar uma pontuação mais complexa acerca de ancestralidades, questão que fomenta os principais conflitos do longa-metragem. Nick Young (Henry Golding), atualmente morando nos Estados Unidos, apresenta à rica família que carrega o seu nome, uma das mais tradicionais de Singapura, sua namorada inteligentíssima, Rachel Chu (Constance Wu), professora de economia em uma universidade, mas sem passado, por assim dizer, ou seja, sem um nome – as tentativas frustradas de um personagem em adivinhar de onde vem a garota nascem disso. As contradições vão surgindo gradualmente, ao encontro de uma estrutura familiar ao público, mas aguçada para traçar paralelos, envolver espectadores na superfície romântica e questionar as hipocrisias entrelaçadas a uma rejeição questionável pelo inédito. A protagonista, dessa maneira, sofrerá para se encaixar em um mundo que não é seu e nunca será seu, mas não precisa ser seu. O mundo das tradições, do purismo exacerbado, pode estar muito errado – o diálogo conclusivo exprime, por fim, as consequências de causas opostas.
A comédia Podres de Ricos, no entanto, não quer destruir qualquer fundamentação antiga, por justamente apresentar tradições e tradições, distinguindo-as. As diferenças substanciais naquilo que pode ser subvertido, agressivo a um mundo de constantes trocas, e aquilo que é demasiadamente puro para ser abandonado, que a ninguém fere, apenas agrega culturalmente. “Se as tradições não forem passadas para frente, elas morrerão”, comenta um dos personagens da obra, enquanto a família do co-protagonista prepara uma comida especial, importante para uma relação menos odiosa do espectador com as ancestralidades em cena – a nostalgia sempre retorna. Como, em diálogo raivoso e performance excepcional – além de background importante -, Eleanor Sung-Young (Michelle Yeoh), mãe do namorado da protagonista, comenta, estamos diante de uma aversão ao que vem de fora, no caso, ao americano – coisa que a personagem principal é, no entanto. O novo, aquilo construído recentemente, é renegado. Os americanismos também. O ótimo roteiro de Peter Chiarelli e Adele Lim – com apenas alguns equívocos na comédia, mais boba do que precisaria ser – sempre encontra espaço para sacadas certeiras – o comentário sobre o sotaque do jovem, a exemplo. A desconstrução existe na evidenciação das contradições, das hipocrisias de uma repulsa aos imigrantes, aos que vem de fora – embora, no outro contexto, dos americanos aos imigrantes, tenhamos a mesma situação -, enquanto, em contrapartida, as origens dessa instituição tradicional, central ao filme, também são migratórias.
Já a direção de Jon M. Chu é, na maior parte do tempo, básica – característica a ser assimilada como negativa ou competente dentro de um discurso geral. O cineasta possui uma filmografia curiosa, sem nunca ter emplacado uma obra aclamadíssima anteriormente, mas filmes de ação genéricos e documentários sobre astros da cultura popular. O resultado surpreendentemente positivo está de acordo com suas limitações artísticas – caso existam verdadeiramente -, contudo, o diretor é, ao menos, enormemente auto-consciente delas, explorando-as. O conjunto da obra, a retificar a argumentação, compara-se ao de uma novela, formato imensamente associado a um país de origem e suas culturas – as novelas mexicanas, as novelas brasileiras. Não apenas no roteiro – explorando diversas narrativas, desencontrando-se nisso, e também evidenciando reviravoltas com ares novelescos – enxergamos Podres de Ricos dessa maneira, mas, paralelamente, nas atribuições que o diretor promove do seu cargo, capturando imagens de maneira simplificada, suficientes apenas para uma relação visual, de espectador e longa-metragem, minimamente inteligível. As alianças a uma equipe determinada com o discurso da obra, além da sensível superfície, fomenta, em contrapartida, as camadas mais encorpadas de uma comédia romântica repleta de previsibilidades – temos a grande amiga, como sempre, mas que, diferentemente do costume, apresenta-se, aqui, crivelmente. Uma obra podre de rica, sobre as tradições e os ineditismos de novas gerações, juntos e misturados, acerca de jovens que vão ao exterior para aprenderem, embora tenham que continuar sendo criações de um único lugar.
As pessoas não mais têm nacionalidades. Quando a protagonista é desestruturada completamente, o cineasta consegue a sua maior conquista particular com a câmera, em uma situação tragicômica completamente coerente com os equívocos do discurso moralista revoltante. As vertentes realçadas são uma mera oposição de aparências, porque muitas ancestralidades, diminuindo qualquer pompa de outrora, já se perderam há tempo – o álcool como condição primária de divertimento, o comportamento quase profano referente ao sexo. As roupas são de marcas estrangeiras. Os carros são de marcas estrangeiras. Os vestidos são de marcas estrangeiras. As referências, também. O jogo romântico, ajudando nessa vertente, é auxiliado por várias retomadas de preceitos básicos de uma comédia romântica – os padrões adotados há décadas para se contar a mesma história contada há décadas, de um casal composto por um plebeu e um nobre. O casal se permite ser a união ideal entre o passado e o futuro, sem moralismos, apenas o amor, daqueles que enfrentam as maiores barreiras do mundo – a protagonista é excelente. A cena do casamento – enquanto o longa-metragem se esquece de personagens apresentados pelo meio do caminho – mostra dois amantes se olhando profundamente, indispostos às obrigações que retrocedem o verdadeiro. Uma mulher, a mãe, não os quer juntos, mas ela ninguém tem – o pai ausente. A trilha sonora complementa, nessa obsessão entre o estrangeiro e o nacional. Já Yellow, do Coldplay, é cantado depois em mandarim.
Direção: Jon M. Chu
Roteiro: Peter Chiarelli, Adele Lim
Elenco: Constance Wu, Henry Golding, Michelle Yeoh, Gemma Chan, Lisa Lu, Harry Shum Jr, Ken Jeong
Duração: 121 min.