Desconhecia a existência do romance Pobres Criaturas até o momento em que descobri que ele seria levado ao cinema por Yorgos Lanthimos, cineasta grego que ascendeu meteoricamente no radar da Sétima Arte na última década, a partir da projeção internacional que obteve com O Lagosta. Não só a premissa frankensteiniana do livro me interessou, como ele marcaria a primeira vez que o diretor trabalharia com um roteiro adaptado, o que indicava que a obra, escrita pelo escocês Alasdair Gray, muito provavelmente ecoava o tipo de bizarrice que parece povoar a mente de Lanthimos. Em outras palavras, leitura certa!
E, nesse aspecto, ou seja, na estranheza, peculiaridade e excentricidade, o livro de Gray originalmente publicado em 1992 não desaponta nem um pouco. Chega até a ser difícil classificá-lo com alguma exatidão, especialmente em uma análise crítica que desejo que permaneça completamente sem spoilers para não arriscar de estragar a experiência cinematográfica dos leitores ou, até mesmo, a experiência literária caso o filme aguce a curiosidade de alguém. E essa dificuldade vem principalmente porque Alasdair Gray não facilita sequer a criação de uma sinopse que faça algum sentido ou reflita o que será encontrado no livro. Para circunavegar o problema, por diversas vezes usarei generalidades e serei críptico, pelo que já peço desculpas de antemão.
Como usei o termo frankensteiniano logo no primeiro parágrafo, partirei dele: em linhas gerais, Pobres Criaturas é uma investigação sobre quem é Bella Baxter, personagem central do romance que, porém, sequer posso chamá-la com tranquilidade de protagonista. A jovem se suicidara jogando-se de uma ponte, mas o Dr. Godwin Baxter, um “cientista maluco”, consegue revivê-la, transplantando o cérebro da filha ainda no ventre de Bella para a mãe. Sim, isso mesmo. Nem Mary Shelley teve ideia tão revoltante parecida! Dessa forma, Bella é uma criança com corpo de mulher adulta – e com um apetite sexual que “não condiz com seu lugar na sociedade” – que o Dr. Godwin, então, passa a educar. Essa história, que bebe livremente de uma multitude de romances vitorianos do século XIX, é, porém, apenas e tão somente uma história.
Alasdair Gray, não satisfeito com sua reimaginação do clássico Frankenstein, faz dessa estranha história de Bella Baxter não algo contado diretamente, mas sim um relato autobiográfico de Archibald McCandless, marido de Bella(!!!), intitulado Episódios da Juventude de um Oficial Escocês da Saúde que, por sua vez, é enquadrado como uma obra real. Usando uma metáfora batida, o que Gray faz é uma grande cebola literária que, a cada página, leva o leitor a mais descobertas e a duvidar do que está lendo em uma versão turbinada do narrador não confiável. No entanto, o objetivo central do autor não é usar esses artifícios apenas para “brincar” com o leitor. Claro que esse encaminhamento narrativo em camadas cria uma gostosa sensação de escavação literária que facilita e muito a leitura e o mergulho nas doideiras que ele coloca em suas páginas, inclusive uma abordagem epistolar digna de Drácula que adiciona uma riqueza de novos elementos, mas o que ele quer mesmo, lá no fundo, é discutir em detalhes o papel da mulher na sociedade e, em geral, desnudar as injustiças sociais tanto da época em que a narrativa se passa, quanto hoje em dia, já que nada realmente mudou.
Se Godwin Baxter, Archibald McCandless e, depois, o advogado viciado em jogatina Duncan Wedderburn, pode ser vistos como caricaturas do sexo masculino que são assim justamente por não agirem como caricaturas, Bella Baxter, que é a caricatura de mulher “criada pelo homem”, tem um desenvolvimento fascinante, com uma narrativa que faz uso de espertos saltos temporais para acelerar nossa percepção das mudanças pelas quais elas passa. Bella é, no final das contas, o instrumento, a guia que leva o leitor por caminhos tortuosos que passam sempre a ideia do quanto a mulher é vista pela sociedade como um objeto, um enfeite, um adereço que cumpre seu propósito único de servir ao homem. E muitos – normalmente do sexo masculino, coincidentemente – podem achar que esse assunto já deu, que é lugar-comum, que não aguentam mais ler ou ouvir, mas a grande verdade é que a questão continua pendente de solução e de aclimatação, de aceitação não por obrigação, mas sim pelas circunstâncias fáticas ao nosso redor.
Por outro lado, sou o primeiro a reconhecer que o autor, em diversos momentos, pesa a mão em seu discurso, o que acaba tornando várias passagens de seu romance uma regurgitação didática de conceitos básicos sobre a mulher, desigualdade social e outros temas interligados. E, mesmo entendendo que às vezes o didatismo é necessário e que obras literárias têm naturalmente menos recursos para transmitir suas ideias, tenho para mim que Gray poderia ter sido mais econômico ou talvez até mais direto, sem investir tempo em longas explicações que poderiam muito facilmente ser resumidas em dois ou três parágrafos. Claro que um romance como esse, que é “um livro dentro de um livro”, exige reenquadramentos narrativos com uma certa constância, pelo que é importante que o leitor compreenda porque algumas explicações parecem repetições sob outro ponto de vista, mas mesmo diante dessa circunstância mitigadora, o romancista escocês talvez tenha se perdido um pouco.
Mesmo que o ritmo narrativo por vezes seja atravancado por exageros explicativos, por assim dizer, Pobres Criaturas permanece como uma obra de grande qualidade literária por saber brincar com gêneros e estilos para transmitir uma mensagem importante e de inegável valor socioeconômico. Afinal, nada como fazer uso de ideias absurdas, bizarras e por vezes até desagradáveis como verniz para sistematizar, desenvolver e sedimentar os verdadeiros temas centrais de um romance, provando que a boa e velha diversão pode vir acompanhada de altas doses de pensamento crítico inteligente e profundo que deixa o leitor pensando sobre o que leu muito tempo depois que virou a última página. E tudo isso para dizer que eu não posso imaginar o que Yorgos Lanthimos será capaz de fazer com esse material…
Pobres Criaturas (Poor Things – Escócia, 1992)
Autoria: Alasdair Gray
Editora original: Bloomsbury Press
Data original de publicação: 1992
Páginas: 336