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Crítica | Planeta dos Abutres (Scavengers Reign) – 1ª Temporada

O repugnante e o sublime em uma dança hipnótica.

por Ritter Fan
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Baseado em curta-metragem de 2016 criado por eles próprios, Joseph “Joe” Bennett e Charles Huettner tiveram a rara oportunidade de desenvolver suas bizarras e sensacionais ideias na forma de série com Scavengers Reign (o título em português é tão estúpido que eu vou me ater ao original), em uma primeira temporada de 12 episódios. O conceito original, ou seja, astronautas de um cargueiro espacial tentando sobreviver em um planeta de ecossistema exuberante, continua presente, mas o que antes eram apenas oito minutos sem diálogos e quase em fluxo de consciência, agora ganha uma narrativa estruturada que, no entanto, mantém o alto grau de deslumbramento e criatividade originais, quase como uma fusão da complexidade e originalidade dos longas Planeta ProibidoPlaneta Fantástico e Akira (originalmente mangá, eu sei) com a invejável construção de mundo do mangá (e longa) Nausicäa do Vale do Vento e com a bela arte de Jean Giraud, mais conhecido como Moebius, além da inacreditável variedade alienígena da ópera espacial e quadrinhos Saga, por Brian K. Vaughan e Fiona Staples, só que todos reimaginados após um intenso e longo “toró de palpite” de um encontro de mentes entre Alejandro Jodorowski, Terry Gilliam, Salvador Dalí e H. R. Giger, talvez com algumas contribuições aqui e ali de Apichatpong Weerasethakul e Yorgos Lanthimos. E isso talvez nem comece a descrever essa obra que parece ser um daqueles frutos que, em um mundo pré-streaming, jamais veria a luz do dia ou, se visse, só seria descoberta anos, talvez décadas depois.

Meu parágrafo inicial pode parecer hiperbólico, exagerado, emocional, mas a grande verdade é que não é, ou pelo menos eu acho que ele faz jus à série. Exatamente como mencionei em minha crítica sobre o curta Scavengers, tentar descrever o que é Scavengers Reign chega a ser um ato criminoso de reducionismo que não faz bem algum à obra. Por essa razão é que escolhi invocar o imagético associado a apenas algumas obras e artistas que conseguiriam deixar entrever a dimensão do que Bennett e Huettner criaram. O que eu posso dizer objetivamente é que, para tornar possível a expansão do curta para quase cinco horas de uma temporada inicial, algo que inicialmente achei exagerado, mas que acaba funcionando sem soluços, a dupla foi naturalmente obrigada a aumentar e muito o recheio, com um número bem maior de personagens e de criaturas, com o uso constante de diálogos (que ainda prezam pela economia, vale dizer) e com flashbacks e sonhos/alucinações que fazem as vezes de flashbacks, e, finalmente, pelo estabelecimento de uma narrativa clássica de jornada, com três núcleos distintos e separados de sobreviventes de um acidente espacial com o cargueiro Demeter 227, na superfície do planeta Vesta, convergindo em direção à nave que uma dupla de astronautas conseguiu, depois de muito tempo, fazer pousar remotamente.

O coração do curta é transplantado para a série, com o riquíssimo bioma de Vesta servindo, de diversas maneiras diferentes, como instrumentos tanto de salvação quanto de perdição aos sobreviventes, ainda que a presença humana na série torne-se progressivamente mais proeminente, por vezes abafando um pouco – mas só um pouquinho mesmo – aquela profunda e indescritível sensação de maravilhamento e repugnância que as hipnóticas imagens da manipulação da flora e da fauna do planeta trazem. Aliás, poucas obras de ficção científica conseguem fazer o que Scavengers Reign faz com aparente facilidade, que é construir um mundo verdadeira e completamente alienígena, daqueles que engole completamente o espectador que se deixar levar pelas magníficas estranhezas que são constantemente colocadas na tela, como em uma competição de deliciosas bizarrices em que o primeiro prêmio é fazer daquele mundo o único mundo em que queremos viver. É, no final das contas, uma viciante experiência audiovisual que quer desafiar o espectador e o próprio gênero da ficção científica em sua capacidade de gerar estranheza, transfixação, ojeriza e fascínio em uma narrativa que se mantém constantemente engajante e estimulante.

Além de Scavengers Reign ter sido um tour de force imaginativo para Bennett, Huettner e toda a equipe criativa na produção, há que se notar o cuidado de todos em manter uma quase científica impressão de unicidade visual. Vemos diferentes ambientes povoados por infinitos seres vivos, de flores ao equivalente de uma manada de búfalos, passando por estranhos organismos que vivem uma vida inteira em segundos e que têm uma única função, e chegando a ameaçadoras criaturas telepatas e outras coisas estranhas tentaculares que parecem vir diretamente de alguma obra de H. P. Lovecraft, mas tudo, absolutamente tudo parece pertencer ao planeta. Se aqui na Terra temos a convivência de minúsculos anfíbios albinos cegos no fundo de profundas e inalcançáveis cavernas com paquidermes de tromba e enormes presas de marfim formando um ecossistema delicado, mas perfeito e que “conversam”, o mesmo vemos em Vesta e isso permite que o mergulho nesse mundo seja ainda mais intenso e envolvente, sem que jamais conscientemente duvidemos da viabilidade biológica do que vemos. É um enorme mérito desses artistas, com seu trabalho criativo, seu uso de uma paleta de cores variada, mas de tonalidade pastel, emulando animações dos anos 70, o quão pouco eles exigem de nós a tão explorada e abusada suspensão da descrença. E tudo isso é entremeado e acalentado por uma lindíssima – e por vezes fantasmagórica – trilha sonora à base de piano composta por Nicolas Snyder que a produção sabe usar não para indicar o que o espectador deve sentir em determinado momento, como tem sido uma constante de uns anos para cá, mas sim para amplificar a atmosfera de descoberta e as sensações que nos invadem a cada passo que é dado pelos personagens.

Falando em personagens, não comentei cada um deles por achar que eles, assim como o ecossistema de Vesta, precisam ser experimentados e acompanhados em sua jornada. Para mim, eles mais representam estados de espírito do que são efetivamente personagens clássicos, construídos e estabelecidos de maneira clássica em uma narrativa. A dupla formada pelo comandante Sam (Bob Stephenson) e a horticultora Ursula (Sunita Mani), que abre a série e que foi tirada diretamente do curta original, parece representar a conexão de mentor e mentorada que, ao longo da progressão da história, troca de papeis, como um bastão sendo passado, como o passado abrindo espaço para o futuro. No caso da especialista em cargas Azi (Wunmi Mosaku), que vive sozinha com o cada vez mais senciente robô Levi (Alia Shawkat), temos um retrato da faceta humana que quer se manter isolada, envolta em seus pensamentos, mas que, por outro lado, sabe que o pertencimento é algo primal, uma verdadeira exigência instintiva. Finalmente, o barbudo Kamen (Ted Travelstead) parece ser o extremo do isolamento, com sua reclusão forçada em uma das cápsulas da nave tendo-o levado ao limite da sanidade, tornando-o alvo de manipulação de uma criatura particularmente sinistra da série, mas com ele, de certa forma, sendo o vetor, o instilador dos piores sentimentos humanos nessa simbiose de pesadelo. Os trabalhos de voz são muito cuidadosos, muito delicados, especialmente Wunmi Mosaku que faz Azi destacar-se com facilidade, equilibrando força com delicadeza, assombro com inteligência.

Por outro lado, não fui muito fã, aqui, de conhecer as histórias pregressas desses personagens, não por não serem interessantes, mas sim por achar que os recursos usados para nós as conhecermos – flashbacks, alucinações e sonhos – terem que ter sido empregados de maneira constante demais para criar narrativas coesas que, para mim, quebram um pouco a imersão proporcionada por todo o restante. Reconheço – como reconheci logo no início da presente crítica – que esse é um artifício quase que inevitável para dar mais estofo à ampliação necessária da narrativa de um curta de alguns poucos minutos para uma temporada completa e eu nem seria exatamente contra visões aqui e ali desses passados, mas, no final das contas, achei que esse foi o aspecto menos orgânico de uma série que é de outra forma impressionante do começo ao fim, tão impressionante que esse suposto “defeito” não afetou minha impressão geral sobre ela. Não que eu adore a adição de uma trinca de personagens na metade da temporada, mas sua função torna-se vital para a narrativa na medida em que ela avança, pelo que não há muito o que fazer.

No entanto, as qualidades infinitas de Scavengers Reign como quase um novo patamar para animações de ficção científica, ultrapassam e muito eventuais problemas sentidos aqui e ali pela natureza da adaptação. São pequenas “dores do crescimento” que, se são sentidas como pontadas mais agudas no começo em que comparações são inevitáveis – e normalmente injustas – elas logo passam a fazer parte da estrutura de uma obra fascinante, complexa, hipnotizante e repugnante em medidas iguais que proporciona um mergulho audiovisual raro de se encontrar por aí. Essa quase incomparável série de Joseph Bennett e Charles Huettner não só precisa ser mais conhecida e mais destrinchada como eu mal posso esperar para ver o que eles serão capazes de criar no futuro seja dentro desse mesmo universo, seja em outros extraterrestres ou mundanos mesmo. O reinado de Scavengers Reign veio para ficar, podem ter certeza.

Planeta dos Abutres – 1ª Temporada (Scavengers Reign – EUA, 19 de outubro a 9 de novembro de 2023)
Criação: Joseph Bennett, Charles Huettner
Direção: Joseph Bennett, Charles Huettner, Jonathan Djob Nkondo, Vincent Tsui, Rachel Reid, Christine Jie-Eun Shin, Diego Porral
Roteiro: Joseph Bennett, Charles Huettner, Sean Buckelew, James Merrill, Jenny Deiker Restivo, Jillian Goldfluss
Elenco: Sunita Mani, Wunmi Mosaku, Alia Shawkat, Bob Stephenson, Ted Travelstead, Sepideh Moafi, Skyler Gisondo, Pollyanna McIntosh, Freddy Rodriguez, Dash Williams, Masha King, James Kyson
Duração: 291 min. (12 episódios)

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