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Crítica | Piquenique na Montanha Misteriosa (1975)

Uma fantasmagórica e perturbadora jornada.

por Ritter Fan
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Tudo começa e termina exatamente na hora certa.

Confusão em Paris (ou Violência por Acidente) foi um começo promissor para Peter Weir como diretor de longas-metragens, mas ninguém poderia imaginar que, logo no ano seguinte, 1975, ele colocaria nas telonas uma adaptação provocadora, perturbadora, enigmática e belíssima de um dos romances mais famosos da literatura australiana, Piquenique na Montanha Misteriosa, que Joan Lindsay publicara oito anos antes e que foi escrito como se fosse a história real do desaparecimento de três estudantes e de uma professora no ano de 1900, em Hanging Rock, o nome popular de um acidente geográfico real batizado de Monte Diógenes, no estado de Victoria. Weir não só soube capturar a natureza da obra, enquadrando seu filme como factual, como, no processo, criou uma das maiores obras-primas do Cinema de seu país.

Russell Boyd, diretor de fotografia que repetiria sua parceria com Weir por diversas vezes ao longo de sua carreira, é uma das peças fundamentais para o longa funcionar como funciona. Usando muita luz e filtros que suavizam a imagem, ele consegue fazer com que as imagens da obra parecem que são vistas através de um véu branco muito fino, como o voil, criando imediatamente uma beleza fantasmagórica, onírica, inquietante, que é amplificada pela bela direção de arte de David Copping. A importância da construção das sequências como pinturas impressionistas, especialmente as que antecedem o desparecimento, é transferir ao espectador aquilo que é fundamentalmente a razão de ser do longa, ou seja, o próprio “olhar”, algo que pode ser também reduzido a termo como uma espécie de despertar da feminilidade, de escalada para a maturidade.

Usando a visão antitética do colonialismo e da ancestralidade do lugar, algo que perpassa toda a narrativa, como a premissa de estranhos em terra estranha, tema caro para a filmografia australiana como um todo, Weir faz um estudo não do mistério em si, mas dos efeitos do mistério na comunidade local, criando uma obra que é muito mais uma experiência audiovisual pura do que um longa tradicionalmente estruturado, que caminha na direção de uma solução esperada ou que, pelo menos, efetivamente feche a história da maneira supostamente esperada. No entanto, muito ao contrário, o que o cineasta parece querer é a contemplação, contemplação sobre a morte, sobre a consciência da finitude, e sobre meninas tornando-se mulheres e sobre uma mulher – não coincidentemente a professora de matemática e ciências – despertando para o sobrenatural, para um chamado primitivo, inexplicável e completamente irresistível.

Há uma evidente carga erótica no longa, não só pelas belas jovens lideradas pela etérea Miranda St. Clare (Anne-Louise Lambert), como pelo uso constante de espartilhos – a sequência de uma “fila” deles sendo ajustados é intensamente sexual – e da revelação à conta gotas da superfície epidérmica das mulheres, seja pela retirada das luvas ou, mais tarde, das opressoras meias e anáguas, tudo cientificamente “observado” por uma câmera próxima, quase explodindo de desejo. Os temas da liberdade sexual, da emancipação feminina e até mesmo o resvalar na homossexualidade em razão dos sentimentos potencialmente maiores do que apenas amizade que a órfã Sara Waybourne (Margaret Nelson), que não vai ao piquenique, sente por Miranda, são provocações que Weir coloca magistralmente em tela, como um maestro regendo uma sinfonia sobre a repressão vitoriana cedendo ao peso do cultivo da consciência de jovens que querem mais do que apenas seguir regras.

Apesar de o longa contar com uma trilha sonora original composta por Bruce Smeaton, que é usada com parcimônia por Weir, o grande destaque nesse departamento fica mesmo pela música tema do longa que é a fusão de duas obras preexistentes no folclore romeno – Sus Pe Culmea Dealului e Doina Lui Petru Unc – tocadas em flauta de pã por Gheorghe Zamfir e órgão por Marcel Cellier, em um efeito auditivo que eleva o lado onírico da obra a outro nível, de maneira semelhante que Gabriel’s Oboe de Ennio Morricone faria, mais de 10 anos depois, por A Missão. Trata-se de música não diegética, mas que é usada de tal forma na sincronização que por muitas vezes parece algo que vem da natureza, da montanha que tenta as meninas e a professora como um canto de sereia, como um código para destravar uma nova dimensão, uma de liberdade, de entrega à si mesma, de manifestação ampla e irrestrita do próprio ser.

Piquenique na Montanha Misteriosa é uma obra sobre a jornada, um recorte de uma época em um lugar remoto que faz do místico, do mágico, uma alegoria sobre o crescimento, sobre o despertar, mas sem, em momento algum, indicar ao espectador como ele deve sentir-se. Peter Weir, muito cedo na carreira, sedimenta-se como um diretor virtuoso, de grande sensibilidade, capaz de hipnotizar, encantar, assustar e verdadeiramente horrorizar o espectador com um longa memorável e absolutamente irresistível.

Obs: Para um relançamento cinematográfico de seu filme em 1988, Peter Weir criou uma versão do diretor com sete minutos a menos do que o original. A versão assistida para a presente crítica não foi a versão do diretor, mas sim a que foi originalmente lançada em 1975.

Piquenique na Montanha Misteriosa (Picnic at Hanging Rock – Austrália, 1975)
Direção: Peter Weir
Roteiro: Cliff Green (baseado em romance de Joan Lindsay)
Elenco: Rachel Roberts, Dominic Guard, Helen Morse, Jacki Weaver, Anne-Louise Lambert, Margaret Nelson, John Jarratt, Wyn Roberts, Karen Robson, Christine Schuler, Jane Vallis, Vivean Gray, Martin Vaughan, Kirsty Child, Frank Gunnell, Tony Llewellyn-Jones, John Fegan, Kay Taylor, Peter Collingwood, Garry McDonald, Olga Dickie, Jenny Lovell
Duração: 115 min.

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