A narrativa desenvolvida por Matteo Garrone em torno de Pinóquio é uma espada de dois gumes: ao mesmo tempo em que atinge o público adulto, também vale-se do público infanto-juvenil nos desdobramentos da história. Apesar da magia chamar a atenção no primeiro momento, e cativar jovens e crianças, o filme introduz uma carga de realismo em seu enredo, transmitindo outras verdades não acessíveis para uma mente ainda em processo de amadurecimento. A adaptação do livro de Carlo Collodi bebe diretamente da fonte do romance do italiano e resgata uma imagética mais obscura e real para tratar de alguns assuntos, chocando pela violência e pela tristeza em muitos episódios.
Se a expectativa recai, num primeiro momento, sobre promessa de um Pinocchio sombrio, esqueça! Ou repense no termo sombrio. No longa, essa atmosfera mais soturna não chega a caracterizar o filme em outro gênero que não o da fantasia, dentro de um drama bem pegado. Aliás, esse obscurantismo vendido pela produção trata-se, na verdade, de uma leitura realista e fiel que o diretor faz do livro, mostrando a maldade, a pobreza e os descaminhos, o que o difere, certamente, da harmonia e da pureza dos contos de fadas.
O filme – que abre uma sequência de lançamentos sobre o boneco de madeira que sairão em breve, com a animação do Guillermo Del Toro (O Labirinto do Fauno, A Forma da Água) para a Netflix, e uma produção de Robert Zemeckis para a Disney – compõe-se incontestavelmente de uma belíssima cinematografia, e é excelente pela parte técnica, mas parece cambaleante no ritmo fílmico, que oscila entre grandes momentos e momentos infinitamente enfadonhos.
Roberto Benigni, que produziu e estrelou Pinóquio e a Fada Azul, retorna novamente para a fábula, mas agora no papel de Geppetto. Sua atuação é um grande fator para o sucesso do filme. Sensível, fraternal e com um coração enorme, o personagem de Benigni é o pai perfeito para o Pinóquio, que é interpretado pelo mirim Federico Ielapi, que recebeu menção honrosa no Prêmio Guglielmo Biraghi, uma premiação do cinema italiano, pelo papel de Pinóquio. As dificuldades da criação paternal, mas também o encantamento de um pai com um filho, é uma camada indispensável na leitura do filme. É bonito de ver os olhos de Geppetto brilharem, mas é frustrante ver Pinóquio sendo devasso.
A mão do diretor acerta ao realçar as características e as condições dos personagens e traz, pelo menos durante o primeiro ato inteiro, algumas questões pertinentes à vida real. O longa abre apresentando a figura de Geppetto (Roberto Benigni), um marceneiro que vive quase miserável financeiramente e na mais completa solidão. As cenas iniciais em que a direção insiste em mostrá-lo decadente, como quando ele vai na taberna de um colega e procura defeito em tudo para poder consertar, e assim ganhar uns trocados e comer, dá conta de lembrar-nos como a fome é um dos estados mais tristes da condição humana. É bastante comum a figura do pobre nos contos de fadas, no entanto, a maneira como Garrone amplifica esta condição torna tudo mais dramático e até sentimental. Visivelmente influenciado pelo cinema do maior cineasta italiano, Federico Fellini, e também bebendo da estética do neorrealismo de Alemanha, Ano Zero, de Rossellini, o diretor não economiza no realismo de seu filme, que nem sempre é fantástico e mágico.
Se pensar do ponto de vista de que a obra se constitui a todo instante flertando com os aspectos, nem sempre fáceis, do real e não do imaginário, então, de fato, é uma obra sombria, porque a realidade é sombria, obscura. A escolha da paleta do filme é pensada para construir justamente este aspecto estilístico que o longa busca, sempre trazendo tons amadeirados, quase barrocos, soturnos, afastando-se de qualquer coloração mais positiva. A propósito, a direção de arte deste filme produz algo esteticamente impecável. As cenas no arado, a árvore de moedas, a própria caracterização de Pinóquio, os fantoches do teatro, são todos momentos em que certamente sabe-se que houve um maior capricho em suas produções. Um exemplo muito evidente do cuidado com a arte do filme se dá no momento em que Geppetto está criando Pinocchio. A cena da criação é um dos pontos mais altos do filme, pois, ao esculpir o seu pedaço de madeira “inanimado”, Geppetto sente, pela primeira vez, o coração de Pinocchio bater, numa obra ainda inacabada. Logo após o feito, o plano se abre do lado de fora de casa, numa imagética noturna sublime, com os raios da lua atravessando as nuvens, demonstrando a beleza da criação. Assim como o livro se constitui de imagens extremamente valorizadas, o filme busca o mesmo em seu esteticismo, a começar com a cena de abertura, em plano aberto, num ângulo magnífico e breve da natureza.
Apesar da questão da mentira ser o condutor universal da história que conhecemos de Pinóquio, o longa opta por não explorar este aspecto de modo exaustivo. A questão da verdade e da mentira vai se delineando aos poucos, através de personagens maliciosos, imorais e charlatões. Certamente temos a cena em que o nariz do menino cresce, mas não é o destaque do filme, que se prende muito mais à um roteiro moralizante e pedagógico. Para mim, parece ser evidente a função pedagógica do filme. Quase como um Bildungsroman (romance de formação), Pinocchio parece formar-se através das experiências vividas durante sua travessia, que o ensina. Algumas cenas de sua formação são pesadas – como o enforcamento do menino, e, depois, quando o boneco, metamorfoseado de burro, é jogado no mar, amarrado a uma bigorna – principalmente a segunda cena, não tanto pelo ato, mas sim pelo realismo pelo qual a cena é construída.
A propósito da trama moralizante, Pinóquio é um personagem da literatura cuja curiosidade o leva a passar por coisas extraordinariamente perigosas para uma criança, coisas fantásticas, que são inexistentes no mundo real. Os perigos dão carga de ação para a narrativa. No entanto, Matteo introduz uma história de moral infanto-juvenil ao demonstrar que as crianças devem sempre buscar serem boas crianças. Sendo boas crianças, elas conseguirão o que almejam.
As aventuras de Pinóquio só é possível na literatura, pois o saldo para um menino da vida real seria certamente desastroso. E é isso o que ele quer demonstrar. Apenas imagine uma criança solta no mundo nas mãos das pessoas mais maldosas e oportunistas que existem por aí e nada mais precisa ser dito. A direção utiliza-se do filme para mostrar os limites e os perigos do mundo, alegorizando personagens como o Gato, a Raposa e o Grilo, que readaptam arquétipos do mundo real. Neste ponto, o longa dirige-se para o público infantil, mostrando a importância de ir à escola e não ser malcriado. Quando Pinocchio se torna um bom menino, começa ir à escola por intermédio da Fada Azul e passa a ter bons resultados no colégio, o seu grande desejo é realizado: o boneco de madeira torna-se humano. Portanto, crianças, obedeçam seus pais e sigam sempre o caminho correto, pois o tortuoso é sempre o mais difícil, apesar de parecer mais fácil e atraente, e Chapeuzinho Vermelho é o grande exemplo moralizante destes enredos – assim pensa Matteo na camada infantil de seu filme.
O realismo fantástico é seguramente bem trabalhado e acerta em todas as metamorfoses, nas mesclas do real com o imaginário e na personificação dos animais. Apesar de ser muito bonito, bem dirigido, com um roteiro excelente e conter uma fotografia prazerosa, o filme se mostra densamente enfadonho em muitas de suas cenas, vagaroso, lento, num ritmo fílmico que se estende por duas horas entre cenas magicamente envolventes, mas também cansativas. A ligação entre as tramas se arrasta e às vezes pode ser exaustivo de assisti-las.
Pinocchio parece-me um filme com boas intenções e acerta mais do que erra na sua proposta adaptativa. Se comparado ao Convenção das Bruxas (Robert Zemeckis, 2020) não há o que reclamar. O argumento é retrabalhado para se adaptar no hoje, à luz da nossa contemporaneidade, e com isso parece ganhar um fôlego, mostrando que a sua trama não faz parte de um tempo determinado, de séculos passados. A direção acredita no seu trabalho e conduz, a partir de uma leitura fiel do texto literário, uma narrativa que se mostra cruel e melancólica, mas que desenha, no pano de fundo de sua criação, os caminhos mágicos da aprendizagem.
Pinóquio (Pinocchio) — França, Itália, 2019
Direção: Matteo Garrone
Roteiro: Matteo Garrone, Massimo Ceccherini (adaptação do livro de Carlo Collodi)
Elenco: Federico Ielapi, Roberto Benigni, Rocco Papaleo, Massimo Ceccherini, Marine Vacth, Davide Marotta, Gigi Proietti, Marine Vacth, Alida Calabria.
Duração: 125 min.