Em sua biografia no Instagram, Julia Wertz caracteriza-se como uma cartunista, exploradora urbana e balatron, essa última palavra um adjetivo antigo na língua inglesa que, hoje, carrega uma conotação negativa de “pessoa desonesta ou enganadora”, mas que, creio, ela tenha querido usar no sentido original, de “pessoa boba ou engraçada”. Essa ambiguidade beirando a autodepreciação é algo típico da autora que, porém, não parece, pelo menos em suas obras, ser monotemática na reclamação sobre sua condição de quadrinista independente que sofre de alcoolismo e que realmente faz exploração urbana em suas horas vagas, um hobby curioso que ela já transformou em quadrinhos fascinantes. Em Pessoas Impossíveis, ela escreve e desenha uma espécie de longa autobiografia sobre sua convivência – não usarei “luta” como é comum, por razões que ficarão claras ao longo da crítica – com o alcoolismo que parte de um acidente automobilístico não grave que ela sofreu em seu aniversário de 30 anos, em Porto Rico, e retorna para Nova York em 2009 para, a partir daí, relatar sua “História de Recuperação Completamente Mediana”, que é o subtítulo da HQ publicada em um tomo só de 320 páginas em capa dura, em 2023, que não só leva o leitor de volta ao seu acidente como vai além dele.
E Pessoas Impossíveis é bem isso, uma história de recuperação completamente mediana mesmo, ou seja, comum, cotidiana, provavelmente o tipo de narrativa enfrentada pela maioria das pessoas que sofre dependência crônica de alguma substância, ou seja, nada que chegue nem próximo a longas metragens e até documentários sobre o assunto, em que a natureza da obra exige uma abordagem dramática mais incisiva, carregada de altos e baixos e de dramas chorosos e trágicos. O mediana, aqui, apesar da ambiguidade proposital, não tem relação com a qualidade da obra em si, que é espetacular como a avaliação acima não me deixa esconder, mas sim com o relato de Wertz, com sua visão cínica de seu dia-a-dia lidando com o alcoolismo e entendendo que, apesar de ele ser inegavelmente parte de sua vida, ela não precisa deixar-se controlar pelo vício ou pelas maneiras padrão de se lidar com ele, notadamente o famoso programa de 12 passos do Alcoólicos Anônimos. Mas é importante também entender que ela não está querendo, com isso, diminuir a gravidade do vício e a importância do AA para lidar com ele. O que ela faz é, singelamente, contar a sua própria experiência e, para ela, o programa não funcionou como esperado ou, talvez mais corretamente afirmando, ela encontrou outras maneiras mais, digamos, orgânicas de trabalhar sua doença que, vale dizer, ela reconhece ter sem nenhum tipo de hesitação.
É evidente que parte de sua forma de lidar com o alcoolismo é justamente escrever e desenhar sua HQ, pois é evidente para o leitor a característica de jornada de autoconhecimento e de catarse que a obra oferece, algo reconhecível imediatamente por qualquer um, mesmo por quem, como eu (e eu reconheço a sorte que tive, ainda que meu pai tenha sofrido de alcoolismo sem, porém, jamais reconhecer o problema), que nunca teve que lidar com vícios químicos e que sequer bebe álcool. O que Julia Wertz escreve é universal. Universal no quanto sua vida é simples, sem grandes eventos, sem mudanças drásticas, mas também com dinheiro apertado, com consumo frugal, poucos mas bons amigos (ter muitos amigos é normalmente sinônimo de não ser próximo de nenhum deles, em minha experiência) e um distanciamento suficiente de si mesmo a ponto de reconhecer e enxergar muito claramente suas fraquezas, mas também seus pontos fortes, mesmo que constantemente mantendo-se em um estado de baixa autoestima.
O estilo artístico em preto e branco de Wertz é enganosamente simples, pois ela consegue exprimir sentimentos com rostos sem grandes detalhes que deixam evidente o estado de espírito de cada um, notadamente de seu avatar, com olhos grandes constantemente entristecidos, ainda que não exatamente tristes. Há toda uma postura em seu desenho que retira o glamour de seus personagens, especialmente dela própria, transformando-os em pessoas comuns, facilmente relacionáveis que parecem existir de verdade e não criadas com funções maiores e mais espetaculares do que apenas narrar uma história de vida muito comum. É uma celebração das pessoas reais que povoam o mundo, com roupas básicas, sem grife, com desejos de consumo que não vão muito além, no caso de Wertz, de fazer suas explorações urbanas variadas, dos mais simples passeios por Nova York, a algumas em tese perigosas explorações de fábricas há muito abandonadas. Mesmo quem não sofre de alcoolismo consegue, imagino, mergulhar com facilidade nesse mundo realista – mas não de traços realistas – que Wertz constrói e que ao mesmo tempo homenageia a cidade em que vivia à época da HQ, com a reprodução muito fiel de algumas quadras e prédios locais e um cuidado enorme com pequenos detalhes, algo que pode ser visto na forma vívida com que seu apartamento “evolui”, por assim dizer.
Pessoas Impossíveis, apesar do tema doloroso, é uma leitura incrivelmente agradável e enriquecedora que faz o coração pulsar não somente pelo drama posto e maneira como Wertz lida com ele, mas pela forma como o estilo “a vida como ela é” nos abraça e nos conforta a cada virada de página, mesmo que por vezes os problemas do cotidiano nos levem a lugares ruins (afinal, a vida é assim). Uma HQ assim é como se a autora estivesse olhando em nossos olhos e deixando claro que o começo de uma recuperação – seja ela de um problema da natureza que for – não é somente seguir tratamentos ou mesmo reconhecer que se tem aquele problema, mas sim viver a vida de maneira que sua recuperação faça parte intrínseca dela e não algo de momento. Não é fácil, sem dúvida, pois somos todos pessoas impossíveis, mas quem disse que a vida é moleza, não é mesmo?
Pessoas Impossíveis (Impossible People: A Completely Average Recovery Story – EUA, 2023)
Roteiro: Julia Wertz
Arte: Julia Wertz
Editora: Black Dog & Leventhal Publishers
Data original de publicação: 09 de maio de 2023
Páginas: 320