- Há spoilers. Leiam, aqui, as críticas dos demais episódios.
Considerando o finalzinho do oitavo episódio, em que vemos os futuros de Perry Mason, Della Street, Pete Strickland e Paul Drake serem devidamente delineados – inclusive com o aparecimento de Eva Griffin, a primeira cliente do advogado nos livros de Erle Stanley Gardner em uma excelente referência que faz a ponte perfeita entre a origem que vimos aqui e o cânone literário -, fica evidente que os showrunners tinham esperança de que a minissérie seria transformada em série, o que, ainda bem, acabou realmente acontecendo. Não que ela não pudesse acabar neste ponto, mas seria um enorme desperdício de potencial se ficássemos só com os oito excelentes episódios que marcam a transformação de Perry de detetive desgrenhado em advogado engenhoso.
Considerando que o episódio anterior montou o quebra-cabeças completo do assassinato do bebê Charlie, cabia ao derradeiro capítulo encerrar o caso perante o Tribunal, uma tarefa dificílima considerando a quantidade de informações que ainda não haviam sido introduzidas para o juiz e os jurados. No entanto, o roteiro que os showrunners Rolin Jones e Ron Fitzgerald escreveram com Kevin J. Hynes é brilhante ao escapar das armadilhas corriqueiras do gênero.
Usando inteligentemente, e por duas vezes seguidas, o encenamento de sequências enganosas, primeiro dando a entender que o detetive Joe Ennis realmente estava depondo, somente para a cena cortar para o treinamento de Perry em sua casa e, depois, usando um flashback sobre o sequestro do bebê para mergulhar no depoimento verdadeiro de Emily Dodson, o texto da trinca de escritores combinado com a magnífica direção de Tim Van Patten, que capitaneou cinco dos oito episódios, laça o espectador com enorme eficiência, quebrando a expectativa de linearidade, longos discursos e perguntas e respostas quentes, com debates entre os dois lados do caso. A dicotomia entre a verdade e a Justiça é o mote do episódio e da série como um todo. Como Mason afirma, lendo o lema acima do juiz, primeiro vem a verdade, depois a busca pela Justiça, mas ele mesmo sabe que a verdade verdadeira, aqui, é impossível de ser provada, de ser materializada de maneira coerente e tudo é, no final das contas, um jogo.
Um jogo sujo, na verdade. Afinal, a única verdade provada por Maynard Barnes é que Emily cometeu adultério e ele joga então com o machismo e a misoginia do júri, dos repórteres e da opinião pública em geral para condenar a acusada apenas com base nisso, deixando evidente que, se o adúltero fosse um homem, esse tipo de argumentação jamais seria aceita, quiçá sequer tentada. Maynard sabe que Emily é inocente, mas ele tem um caso em tese fácil e ao mesmo tempo chamativo nas mãos e condenar alguém, mesmo que a verdade seja deixada de lado, é muito melhor do que não condenar ninguém. E, lógico, toda a atenção positiva que ele puder amealhar para si mesmo ajuda em sua campanha pela prefeitura…
A questão é que a sujeira, nesta série, existe dos dois lados, algo que ficou evidente ao longo de toda a temporada, mas que, aqui, ganha uma ilustrativa e perfeita mini-reviravolta. Perry revela toda sua insegurança quando arregimenta Pete para subornar um dos jurados justamente para chegar no resultado que ele, sem saber, chegaria de qualquer forma. Se a verdadeira Justiça simplesmente não é possível, então ela precisa ser alcançada de alguma outra maneira, mesmo que moralmente condenável, mesmo que completamente criminosa. Fica para o espectador decidir se o que Perry fez é justificável e o que isso faz dele, valendo notar que seu estratagema literalmente mafioso ficou trancafiado a sete chaves, sem que Della e Paul soubessem.
Mas quem disse que a sujeira é exclusiva do mundo jurídico da série? Não só a Igreja da Irmã Alice passa a ser investigada a partir das provas reunidas por Perry e equipe, como o lado religioso da temporada é reservado para seu final, com uma outra pequena reviravolta em que vemos a asquerosa Birdy McKeegan não só demonstrar completo descaso sobre o paradeiro de sua filha, como também – e principalmente – manipular a fragilizada Emily e seu bebê “ressuscitado” para reconstruir sua religião manipuladora. Quando sentimos vontade de pular na tela para enforcar alguém, quer dizer que o objetivo do roteiro foi plenamente alcançado…
O que me faz tirar a nota máxima do episódio de encerramento da temporada é a necessidade que os showrunners sentiram de não deixar pontas soltas. Entre as pazes entre Perry e Lupe, o assassinato de Ennis a mando de Holcomb, a sequência que mostra Pete testemunhando sobre a igreja no caso movido por Hamilton Burger, o encontro de Perry com Alice e a já mencionada armação para o futuro de Perry Mason e associados, o bombardeio de informações foi talvez muito grande e talvez desnecessário de existir dessa forma. Pode ser implicância minha, mas a vitória de Perry acaba perdendo a força com o dénouement estendido que é encaixado no final, ainda que, paradoxalmente, seja gratificante ver alguns dos desdobramentos, como o afogamento de Ennis e Della ditando as regras para Perry.
Seja como for, Perry Mason é mais uma grande aposta da HBO que pagou dividendos quase que imediatamente. Uma série introdutória exemplar de um personagem clássico que o revitaliza, torna-o social e politicamente relevante para a época em que vivemos e hipnotiza o espectador com um elenco de se tirar o chapéu e uma reconstrução de época de fazer o queixo cair. Mal posso esperar para ver o que o futuro reserva para Perry Mason.
Perry Mason – 1X08: Chapter Eight (EUA, 09 de agosto de 2020)
Showrunners: Rolin Jones, Ron Fitzgerald (baseado em personagem criado por Erle Stanley Gardner)
Direção: Tim Van Patten
Roteiro: Rolin Jones, Ron Fitzgerald, Kevin J. Hynes
Elenco: Matthew Rhys, Shea Whigham, Juliet Rylance, Nate Corddry, Gayle Rankin, Andrew Howard, Eric Lange, Veronica Falcón, Robert Patrick, Tatiana Maslany, Lili Taylor, Stephen Root, Chris Chalk, Justin Kirk
Disponibilização no Brasil: HBO
Duração: 56 min.