O cinema é um excelente meio para ilustrações dos estilos de vida ideais para as sociedades contemporâneas. Há filmes em que os personagens trafegam por vias limpas, iluminadas, livres, em suma, um sonho para qualquer condutor de automóvel. No entanto, há uma parcela de produções que utilizam a obstrução das vias urbanas, os motoristas grosseiros e mal-educados, juntamente com os acidentes que em alguns casos, deixam vítimas mortais, como material de extrema “potência” para o estabelecimento dos conflitos dramáticos proposto pela história narrada por meio de imagens e sons. A reflexão em questão se propõe a analisar um documentário que se integra ao segundo grupo, nada idealizador em relação aos desafios da mobilidade urbana.
Dirigido e escrito por Murilo Azevedo, o documentário Perrengue – O Desafio da Mobilidade em São Paulo não se enquadra nos padrões do entretenimento, sendo mais uma realização acadêmica de cunho jornalístico, preocupado em denunciar, por meio do suporte audiovisual, os problemas decorrentes da mobilidade urbana em uma das cidades mais complexas em termos da habitação e deslocamento no país: São Paulo, cidade garantida nos projetos que recebem os grandes espetáculos internacionais, espaço dos grandes museus e mostras de arte, local ideal para conferir as melhores peças teatrais exibidas no país e ambiente onde encontramos galerias com bugigangas de temática cinematográficas.
Este notório espaço também é a zona de caos para habitantes e trabalhadores de suas extremidades, pessoas que atravessam desafios cotidianos que podem ser comparados ao caos de uma zona de guerra: é a briga por espaço, é a crise nas vias engarrafadas, juntamente com o inchaço que torna os transportes públicos um pesadelo diário na vida dos entrevistados, figuras que exibem as suas celeumas graças ao acompanhamento que é realizado durante suas jornadas diárias entre o eixo casa-trabalho, odisseia cotidiana que consome basicamente metade das 24 horas de seus dias.
Em Perrengue – O Desafio da Mobilidade em São Paulo, o tema não é apenas tocado no discurso verbal dos entrevistados, mas também é parte integrante das imagens bastante alegóricas. O filme começa com várias pessoas circulando no metrô. A condução sonora, assinada por Danilo Giovanni, anuncia o “caos” do que será apresentado por meio de passageiros e pedestres em pontos de ônibus, carros e outros meios de mobilidade urbana. Tudo é muito fluente e dinâmico, mesmo que volumoso. Esse preâmbulo anunciado de maneira irônica reflete o desejo dos personagens sociais que serão radiografados em suas longas trajetórias do trabalho para casa, pois logo adiante, a câmera capta um agente de trânsito em sua tentativa de ordenar minimamente os transeuntes. É neste momento que o documentário corta o foco fluente para os congestionamentos irritantes de São Paulo, metrópole que pode, atualmente, ser alegoria para outros centros urbanos brasileiros.
Há vários depoimentos breves, mas a jornada central acompanha quatro pessoas. Alexandre Ferreira, 39 anos, analista financeiro que trafega 27 KM diariamente há duas décadas. Ele atravessa a cidade ao utilizar o metrô e o ônibus, semelhante ao cotidiano de Gustavo Araújo, 57 anos, motorista de transporte público que corta a cidade e a periferia em seus 77 KM rodados todo dia, circuito que o fez experiente em trânsito e seguro ao afirmar que “atualmente não dá para marcar nada com horário bem definido”. Com o trânsito de hoje, marcar horário é impossível. Patrícia Andrade, 22 anos, atua como professora e alega que é tida como corajosa por outras pessoas, pois a sua jornada de tráfego diário a deixa mais tempo no transporte público que propriamente dentro de casa. Ela revela que “nem nos finais de semana dá vontade de sair, pois a pessoa corre o risco de enfrentar o trânsito”, celeuma cotidiana na ida ao trabalho.
Há ainda o depoimento de Marcos Fenício, publicitário que “desliza” pelas vias urbanas de carro, dentro de certo conforto, mas ciente dos custos de sua jornada minimamente confortável. No eixo de entrevistados “autorizados”, isto é, especialistas nas questões de infraestrutura do que é debatido, temos Nazareno Stanislan (Urbanista), Ermínia Maricato (urbanista) e Irineu Gnecco Filho (Diretor de Planejamento da CET-SEP). Para Stanislan, os usuários de carros utilizam a justificativa da falta de conforto e segurança do sistema público como requisitos que os impedem de perambular em seu cotidiano. O urbanista também destaca o planejamento das vias urbanas brasileiras, focada nos carros após o desenvolvimento econômico entre a primeira década dos anos 2000 e a primeira parte dos anos 2010, numa alusão às propostas políticas que se não eram perfeitas, tentaram ao menos ajustar o caos econômico e social das zonas urbanas do país.
Percebemos que conforme seu discurso, houve um efeito rebote: as pessoas que antes sequer imaginavam ter a possibilidade de adquirir um automóvel, conseguiram conquistar tal meta. Para dar conta dessa demanda, entretanto, os projetos em sua maioria focaram nos carros (vias, estacionamentos, semáforos, etc.), mas deixaram de lado o transporte público. Gnecco Filho, em depoimento consonante com as ideias de Stanislan, afirma que no histórico das políticas públicas do país encontramos escolhas que excluíram muitas pessoas das regiões centrais, alocadas nas bordas, mas que em determinados momentos do cotidiano, precisam trafegar entre o eixo central e as extremidades, movimentação que causa o estresse diários do trânsito de São Paulo, um “perrengue” desafiador para a mobilidade de seres humanos.
Os depoimentos de Maricato também são lúcidos e propõem mudanças efetivas. Ela é taxativa: não adianta construir pontes, viadutos e túneis diante de uma sociedade que em si não aderiu ao processo de conscientização. “Não é possível que todos tenham carros”, haja vista a quantidade de habitantes para as possibilidades de espaço designado para deslocamento. A urbanista ainda reforça o histórico do problema, ao apontar as políticas neoliberais das décadas de 1980 e 1990 como um dos cernes da celeuma no trânsito, pois diante de gestões incompetentes, o transporte público foi relegado ao obscurantismo e sucateamento. A cada dia, novos edifícios são planejados, dando margem ao inchaço social, afinal, é preciso refletir: para onde vai tanta gente?
A periferia, transformada em “dormitório”, não oferece empregos, o que ocasiona a demanda pelos centros que hoje, dificilmente abrigam pessoas, delineando-se mais como espaço para transações comerciais. Ademais, Perrengue – O Desafio da Mobilidade em São Paulo pode ser considerado um documentário que propõe mudanças, mas a sua exposição e desfecho são acompanhados por amargura e descrença, principalmente nas instituições regentes que poderiam, de alguma forma, mudar os rumos da situação de mobilidade da cidade, alegórica para outras regiões igualmente complicadas do Brasil. “As pessoas vivem como se o drama fosse individual”, aponta um depoimento, algo insistente e conectado com a afirmação do motorista taxativo ao alegar que “não crê na mudança”. Ceifador da qualidade de vida e das relações familiares de muitos, o trânsito brasileiro é catarse.
Espera-se, tal como a professora entrevistada, que haja alguma transformação que justifique suportar tanto descaso e desrespeito. Falta mais empenho do poder público diante da situação, mas também é preciso pensar no papel de cada ser humano para efetivação da mudança, afinal, tal como o lema de uma recente campanha, “no trânsito, o bom mesmo é ser humano”. Para ser humano, por sua vez, é preciso ser tratado como tal, não como animais rumo ao abate cada vez que alguém se desloca de sua casa para exercer funções profissionais e pessoais na cidade.
Eficiente como crítica social, faltou em Perrengue – O Desafio da Mobilidade em São Paulo a dedicação maior aos elementos que engendram a narrativa enquanto documentário: tratamento do som que estoura constantemente, melhor enquadramento dos entrevistados, créditos mais criativos e edição que contemple melhor os valiosos depoimentos exibidos. Assim, o filme teria como ser uma referência artística maior para fazer parte do setor de “cinema brasileiro” na prateleira de algum colecionador de filmes ou até mesmo numa locadora de filmes, algo que creio, esteja mais instinto que o bom senso e a gentileza no trânsito.
Perrengue – O Desafio da Mobilidade em São Paulo — (Brasil, 2013)
Direção: Murilo Azevedo
Roteiro: Murilo Azevedo
Elenco: Alexandre Ferreira, Gustavo Araújo, Patrícia Andrade, Marco Fenício, Nazareno Stanislan, Ermínia Maricato, Irineu Gnneco Filho
Duração: 26 min.