Home QuadrinhosOne-Shot Crítica | Tintim: Perdidos no Mar (Carvão no Porão)

Crítica | Tintim: Perdidos no Mar (Carvão no Porão)

por Luiz Santiago
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Fechando a década de 1950, Hergé nos apresenta uma história abarrotada de eventos e personagens de suas aventuras anteriores, fazendo de Perdidos no Mar (ou Carvão no Porão, ambos os títulos recebidos pelo álbum aqui no Brasil) uma jornada de classificação complicada, já que por um lado é extremamente divertida, e por outro, bastante confusa, com pouco desenvolvimento dos personagens e principalmente, da história central.

O autor investiu em uma história que tivesse blocos de eventos em lugares diferentes e que envolvesse uma rede de personagens – vilões e mocinhos – conhecidos de seu protagonista. Eu havia já ressaltado no texto de O Caso Girassol a opção de Hergé por citações bastante explícitas a eventos de suas obras passadas, o que de certa forma não se trata de uma novidade nas Aventuras de Tintim, mas que nos álbuns dos anos 1950, passou a constar de maneira mais ampla a cada edição. Aqui, a história começa com Tintim e seu amigo Capitão Haddock saindo do cinema e comentando sobre o filme que assistiram. Essa saída, tendo um motivo cômico como ponte, levará a dupla a reencontrar o General Alcazar, que já tinha aparecido na Europa como atirador de facas num espetáculo do Music-Hall Palace, em As 7 Bolas de Cristal. Nos quadros que se seguem ao estranho encontro, o leitor acredita que a aventura será mesmo focada no General e a sua tentativa de tomar o poder do General Tapioca, daí a citada compra dos aviões.

Mas um outro grande evento se interpõe ao de Alcazar, e então passamos para as confusas brigas no Emirado do Khemed, começando por uma embaraçosa cisão do Emir com a companhia aérea Arabair, que se recusou a fazer manobras para o pequeno e endiabrado Abdallah. Dentre um momento e outro, temos ainda a engraçada presença de Abdallah no Castelo de Moulinsart (enviado, segundo o Emir, para aperfeiçoar o seu francês); a temporária deposição política do Emir; o exílio e deriva de Tintim e Haddock… ufa! É muita coisa para um único livro! Só para que se tenha uma ideia, vou listar a sequência de personagens que Hergé trouxe para essa história. E veja, não conto nessa lista os personagens recorrentes na obra do autor, a saber, Dupond e Dupont, Tintim, Milu, Nestor, Capitão Haddock e o Professor Girassol. Vamos à lista:

  • General Alcazar; Emir Ben Kalish Ezab; Abdallah, o filho do Emir; Rastapopoulos (Marquês Di Gorgonzola); Senhor Oliveira de Figueira; Doutor Müller; J.M. Dawson; Allan; Bianca Castafiore; Serafim Lampião.

carvão no porão plano critico

Mesmo que nem todos esses personagens estejam ligados ao caso “central” da história (entre aspas porque não consigo classificar o conflito político no Khemed como evento central, logo, diria que Perdidos no Mar não tem um evento central), eles aparecem com bastante destaque em episódios diferenciados, o que torna a saga bastante ágil e divertida, mas sem identidade narrativa alguma. E ainda é importante lembrar do caso dos negros no porão do cargueiro (o “carvão no porão” do outro título), que queriam ir à Meca em peregrinação, mas na verdade rumavam, sem saber, para um mercado ilegal de venda e compra escravos.

Há quem critique a atitude de Hergé em relação aos negros nesse álbum, mas trata-se de implicância abobalhada de leitor desatento. Não há absolutamente nenhuma postura racista ou minimizadora da parte de Hergé em relação aos negros nesse álbum, algo bem diferente da que ele tomara em 1931, quando escreveu Tintim no Congo. Nem os xingamentos do Capitão Haddock são ofensivos aos negros (como muita gente apregoa), porque, qualquer um que tenha lido pelo menos duas aventuras protagonizadas pelo Capitão sabe que ele xinga tudo e todos: humanos, animais, minerais, vegetais, objetos, fenômenos da natureza… Vê-se claramente uma mudança de olhar o mundo por parte de Hergé: aquele jovem paternalista, ingênuo e talvez racista dos anos 1930 era agora um cinquentenário com ideias completamente diferentes.

Perdidos no Mar é uma história pouco usual de Tintim, seja pela profusão de personagens, seja pelo roteiro quase caótico e sem um foco narrativo ou quebra dramática bem estabelecidos. Todavia, de maneira paradoxal, é uma história muito divertida de se ler, com ação constante e bom humor o tempo inteiro, especialmente no que se refere à temporada de Abdallah em Moulinsart e, claro, tudo em torno do Capitão Haddock e do Professor Girassol. Talvez, para quem não conhece bem o mundo de Hergé e gostaria de ter uma visão ampla de sua criação, Perdidos no Mar seja a obra ideal. Para quem já conhece, a obra é um ótimo “elefante branco”, daqueles que você sabe que é estranho, mas mesmo assim, gosta.

Coke en Stock – Bélgica, 1956 a 1958
Publicação original: Tintim Magazine, 31 de outubro de 1956 a 1º de janeiro 1958.
Publicação encadernada original: Casterman, 1958
No Brasil: Companhia das Letras, maio de 2008
Roteiro: Hergé
Arte: Hergé
64 páginas

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