Home FilmesCríticas Crítica | Pequenas Coisas Como Estas

Crítica | Pequenas Coisas Como Estas

Um conto natalino para relembrar uma denúncia irlandesa.

por Davi Lima
19 views
Pequenas Coisas Como Estas

Pequenas Coisas Como Estas é um típico exemplo de obra de festival, especialmente de Berlim, com uma abordagem que reforça sua denúncia por meio de um estilo de cinema clássico e naturalista. Baseado no livro homônimo da escritora irlandesa Claire Keegan, o longa se destaca como uma adaptação fiel, ao traduzir o ritmo literário da obra original em uma narrativa visual paciente, que utiliza metáforas visuais para construir o drama, em vez de depender exclusivamente dos diálogos. No entanto, essa ênfase nos códigos visuais acaba parecendo excessiva, deixando de lado o subtema natalino que poderia enriquecer a experiência.

Desde a cena inicial, em que os topos das igrejas compõem a paisagem de uma cidade irlandesa deserta ao amanhecer, acompanhados pelo som de um corvo, o diretor Tim Mielants deixa claro que o roteiro de Enda Walsh foi cuidadosamente planejado. Essa atenção ao detalhe, alinhada à cartilha básica do cinema que preza por “mostrar em vez de dizer”, é evidente na decupagem bem executada do filme. Esse planejamento preciso resulta em uma obra compacta, onde, ao longo de seus noventa e oito minutos, a transformação da narrativa é nítida, evoluindo de forma clara entre a cena inicial e a cena final.

A igreja e as madres, representadas especialmente pela atuação marcante de Emily Watson como Mary, a líder das freiras, são claramente retratadas como as vilãs por meio da fotografia e da performance do elenco. Em contraste, o protagonista Bill, vivido por Cillian Murphy, assume o papel de um herói incapaz de agir plenamente como tal ou que ainda não sabe como fazê-lo. Trabalhando em tarefas pesadas e sujas, como lidar com carvão e adubo, sua jornada se torna uma metáfora para a busca por “lavar as mãos”

O filme apresenta uma narrativa bem construída, em que o diretor utiliza recursos como foco e desfoque, enquadramentos com janelas e profundidade de campo para destacar o protagonista, constantemente pressionado pela realidade e incapaz de realizar uma boa ação ou demonstrar a misericórdia pregada pela igreja que domina a cidade, a educação e outras estruturas sociais. Com essa linguagem visual precisa, o longa busca denunciar e relembrar o escândalo das Lavandeiras Madalenas. Diante de uma obra tão coesa e cuidadosa ao abordar um tema tão relevante, torna-se difícil apontar falhas significativas em sua execução. No entanto, os flashbacks da infância de Bill acabam tornando o filme excessivamente didático ao reforçar de forma repetitiva o dilema do protagonista, que se sente acuado por sua incapacidade de promover justiça social ou ajudar os necessitados — especialmente no Natal, em um contexto católico de caridade. Além disso, Pequenas Coisas Como Estas não aproveitam plenamente o potencial simbólico e emocional do clima natalino, que poderia ter enriquecido a narrativa.

O filme incorpora de forma interessante referências literárias a Charles Dickens, apresentando um protagonista que aprende uma lição sobre o Natal, com Cillian Murphy entregando uma atuação impecável em todas as cenas, traduzindo com precisão as intenções do roteiro. Contudo, apesar da decupagem quase perfeita de Tim Mielants, ela muitas vezes cai no lugar-comum ao abusar de close-ups. Além disso, a temática natalina parece estar mais associada aos vilões religiosos do que ao herói, que, como pai de cinco filhas, poderia ter sua relação familiar mais profundamente explorada nesse contexto. Adotando uma abordagem clássica, o filme parece flertar com a sensibilidade de A Felicidade Não se Compra, embora Tim Mielants não tente recriar o clássico no contexto da Irlanda dos anos 80. As cenas delicadas na casa de Bill ou durante a compra do presente para sua esposa oferecem momentos de ternura, mas acabam destoando do denso trabalho fotográfico, que utiliza focos e desfocos com uma virtuosidade que domina o filme. Essa desproporção pode ser proposital, refletindo o contraste temático da obra, mas esses momentos criativos acabam subvalorizados dentro do conjunto, quando poderiam brilhar ainda mais.

O clima austero do inverno e do tema de abuso religioso encontram breves momentos de alívio em uma luz natalina, simbolizada em um plano que parece digno de um cartão de convite para a ceia de Natal. No entanto, o diretor opta por um reforço constante, tanto visual quanto narrativo, do presente e do passado traumático do protagonista, especialmente em relação ao Natal. Isso faz com que a denúncia assuma um tom mais politizado, cinza e padronizado, deixando de explorar plenamente a beleza simbólica do ato de “limpar as mãos”. Detalhes como o sapato azul, a luz amarela na cozinha ou as cores vibrantes da TV oferecem um potencial estético e emocional que poderia enriquecer a narrativa, mas acabam subutilizados frente à abordagem mais rígida e direta do filme.

Como o próprio título sugere, é por Pequenas Coisas Como Estas que o protagonista se sente inquieto diante de sua incapacidade de agir contra as injustiças em sua cidade. Da mesma forma, o filme, embora tecnicamente impecável e dirigido com virtuosismo por Tim Mielants, corre o risco de se tornar apenas mais uma obra bem executada, mas sem grandes ousadias criativas – algo que se torna ainda mais evidente ao abordar um tema tão explorado quanto o Natal.

Pequenas Coisas Como Estas (Small Things Like These) – Irlanda, Bélgica, EUA, 2024
Direção: Tim Mielants
Roteiro: Enda Walsh, adaptando o livro homônimo de Claire Keegan
Elenco: Cillian Murphy, Eileen Walsh, Giulia Doherty, Aoife Gaffney, Faye Brazil, Agnes O’Casey, Louis Kirwan, Michelle Fairley, Mark McKenna, Emily Watson, Clare Dunne
Duração: 98 min.

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais