A cinebiografia musical sofre um certo preconceito por parte do público pela forma como muitas delas, pelo menos as mais populares, seguem uma fórmula bem similar: começando com uma performance do artista que serve de objeto de estudo para a cinebiografia, acompanhando relatos da infância que fizeram dele a pessoa brilhante que é hoje, até que ela atinge um sucesso enorme com eventos-chave da sua história sendo apresentados de forma mais apressada. A virada da trama acontece na queda desse artista (seja drogas, traição ou algo do tipo), para que no fim tudo culmine em um arco de redenção, o que logo nos leva de volta para aquela performance brilhante que faz com que o filme inteiro fosse interpretado como as lembranças daquele artista sendo transmitidas para o espectador.
Grandes artistas e grupos musicais sofreram cinebiografias que seguiam esse mesmo padrão ou apenas tiveram filmes sem metade da identidade e carisma necessária para representar aquela pessoa, como aconteceu com Nina, Stardust ou a atrocidade que foi Bohemian Rhapsody e a tentativa de confundir boa atuação com imitação de trejeitos. Claro que alguns filmes seguem essa fórmula e ainda assim tem um bom resultado por conta de ótimas atuações e uma direção mais criativa, como em Rocketman ou Straight Outta Compton: A História do N.W.A.
Para evitar sair do formato estagnado e tentar arriscar uma cinebiografia que se diferencie entre tantas, o diretor Morgan Neville escolheu contar a história de Pharrell Williams, um dos produtores mais importantes da história do rap e hip hop, através de uma animação feita com peças de Lego (o que explica o título da obra). Neville aproveita seu repertório como documentarista e cria uma mescla entre a estrutura documental e da ficção para pintar um retrato de Pharrell como uma pessoa que teve seus altos e baixos, mas sua criatividade e influência é tão grande que ultrapassa os limites da própria obra e manipula o formato, como quando brinca com a forma que as legendas surgem durante os depoimentos das pessoas em documentários ou recriando eventos, mas de forma caricata ou completamente ficcional.
Essa abordagem faz com que em um momento o espectador assista versões em Lego de figuras essenciais para a construção da identidade do rap e hip hop norte-americano, como Timbaland, Jay-Z, Kendrick Lamar e Missy Elliot, dando depoimentos sérios sobre a jornada de Pharrell e seu papel na construção de algumas lendas da música; mas em outro momento temos os segmentos onde a escolha de fazer o filme inteiro animado em Lego apenas ajudou na representação de algumas ideias mais absurdas, como a recriação do encontro entre Pharrell e Snoop Dogg, com uma névoa alucinógena que faz com que o Dogg se materialize em um cão de verdade, ou quando recebemos um discurso motivacional do divulgador científico, Carl Sagan, no espaço.
Peça por Peça tenta algo diferente no formato e na maioria das vezes impressiona por conta da narrativa visual e as ótimas composições musicais de Pharrell, com sucessos produzidos ou gravados por ele, desde suas parcerias com Justin Timberlake, Gwen Stefani, Snoop Dogg e Daft Punk, até seus lançamentos solo, como o fenômeno mundial que foi Happy!. Ainda que no fim mantenha a mesma estrutura de cinebiografia genérica, é uma experimentação divertida sobre uma das maiores mentes da música.
Peça por Peça: Uma História Pharrell Williams (Piece by Piece) – EUA, 2024
Direção: Morgan Neville
Roteiro: Morgan Neville, Jason Zeldes, Aaron Wickenden, Oscar Vasquez
Elenco: Pharrell Williams, Morgan Neville, Kendrick Lamar, Gwen Stefani, Timbaland, Snoop Dogg, Justin Timberlake, Jay-Z, Busta Rhymes, Missy Elliot, Pusha T
Duração: 93 min.