SPOILERS!
Depois de uma experiência bem “fora de seu radar” com Sob o Signo de Capricórnio (1949), Hitchcock voltou ao familiar suspense e também à sua terra natal, criando um drama que faria história por apresentar um falso flashback. A produção de Pavor nos Bastidores teve consideráveis problemas de relação entre a atriz Jane Wyman e o diretor, pois ela não queria parecer “feia e desarrumada” como camareira, enquanto contracenava com alguém tão glamourosa e imponente quanto Marlene Dietrich. Já em relação à diva alemã, Hitchcock teve um dos melhores processos de filmagem de sua carreira, mesmo que ela não tivesse sido uma escolha do cineasta para viver Charlotte Inwood, uma marcante femme fatale.
Renunciando à sua muito conhecida fama de controlador, o Mestre do Suspense chegou a um acordo com Dietrich e permitiu que ela própria discutisse com o fotógrafo Wilkie Cooper como seria a iluminação de suas cenas. A atriz se interessava por fotografia e foi realmente ensinada por Josef von Sternberg e pelo fotógrafo Günther Rittau (Os Nibelungos, Metrópolis, O Anjo Azul) a escolher o melhor tipo de iluminação e ângulos de câmera para gerar o que chamavam de “memorável primeiro impacto“, ou seja, como sua personagem poderia ser emocionalmente maximizada pelo tipo de luz e planificação utilizadas. O resultado é interessantíssimo e fácil de ser percebido até por quem não tem olhar treinado para aspectos técnicos do cinema. As grandes cenas com Dietrich possuem mesmo um princípio de abordagem de luz, sombra e filtros diferente de todas as outras realizadas no filme, um verdadeiro presente que nos é dado a cada cena.
Hitchcock comentou, algum tempo depois do lançamento de Pavor nos Bastidores, que sua intenção era fazer algo “sobre a arte de atuar“, e essa afirmação pode ser percebida na maneira como o diretor constrói a grande intriga da obra. Partimos do flashback para uma história de fuga costurada por um romance. Mais adiante, esse aspecto do filme causará alguns problemas para o roteiro, mas no todo, o triângulo amoroso é bem apresentado e finalizado. Na primeira parte, acompanhamos uma série de ações impulsivas, com todos tomando atitudes suspeitas, perigosas e moralmente complicadas, abrindo as portas para o estabelecimento de muitas mentiras. O roteiro, aliás, foi propositalmente escrito para que essas mentiras se desenrolassem uma após a outra, e Hitchcock cria um bom ambiente de encenação bemm específico (diegético mesmo) para cada uma delas. Em contraste a isso, na reta final, vemos cada uma dessas mentiras serem descobertas e aí a encenação dá lugar à retirada de máscaras, com todos os personagens saindo de seus personagens.
Como o texto foca primordialmente em ações por blocos (mentiras sendo contadas, mentidas sendo investigadas/testadas e mentiras sendo descobertas) e não em desenvolvimento geral da história em par com os personagens, temos uma curiosa aparência de travamento no miolo do filme, especialmente quando a família de Eve entra em cena e também quando ‘Ordinary’ Smith (Michael Wilding) chega para abalar o coração da mocinha. A passagem entre cada um dos blocos não parece fluir com perfeição e esse elo só é consertado quando o enredo leva todo mundo para um único espaço e a história começa a se concluir como uma passagem de ato numa peça. Claro que tem o patético caminho final para o personagem de Richard Todd a ser considerado, mas não é nada que tire da obra aquilo que ela tem de melhor.
O tratamento para a grande pergunta do filme (“quem matou?“) não é exatamente o mais forte que Hitchcock já dirigiu, mas vejo com bons olhos a escolha do cineasta para deixá-lo em segundo plano (como processo investigativo), pois isso não fragiliza ainda mais a abordagem diferente dessa história (quase metalinguística, de certo modo) e faz com que essa escolha, mesmo com o tropeço no romance e no desenvolvimento específico de personagens — exceto Dietrich, que por ser poderosa como era, já entrega tudo de sua personagem em uma única cena — jamais caia vertiginosamente de qualidade ou perca a nossa atenção no meio do caminho. Um drama sobre as muitas máscaras que vestimos ao longo da vida e o quanto isso pode ser prejudicial para nós e para muitos dos que estão à nossa volta. Como em toda encenação, um dia, as máscaras caem.
Pavor nos Bastidores (Stage Fright) — Reino Unido, 1950
Direção: Alfred Hitchcock
Roteiro: Whitfield Cook, Alma Reville, James Bridie, Ranald MacDougall (baseado na obra de Selwyn Jepson)
Elenco: Jane Wyman, Marlene Dietrich, Michael Wilding, Richard Todd, Alastair Sim, Sybil Thorndike, Kay Walsh, Miles Malleson, Hector MacGregor, Joyce Grenfell, André Morell, Patricia Hitchcock, Ballard Berkeley
Duração: 110 min.