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Crítica | Paterno (2022)

Filme para no diagnóstico de um certo tipo social em crise na sociedade, com grande atuação de Marco Ricca.

por Michel Gutwilen
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Na família de classe média alta em Que Horas Ela Volta?, Lucas, personagem de Lourenço Mutarelli, era conscientemente uma representação patética da figura paterna, reprimido e frustrado, que encontrou no envelhecimento um distanciamento e adormecimento de todas suas aptidões artísticas durante uma juventude que se mantinha ativamente interessada pela pintura e música. Sua caracterização era para ser vista pelo público como um misto de pena, mas também com uma certa repugnância. Neste sentido, o protagonista de Paterno, irá encontrar similaridades e distanciamentos da figura anterior. 

Por um lado, parece haver uma tendência na representação da figura masculina desta classe como alguém que foi um jovem sensível com potência artística que foi duramente descontinuada pelas imposições da vida adulta, trazendo para esta geração a ideia de que seu legado familiar é quase que uma maldição, impedindo com que eles voem livremente. Assim, a contextualização de Sérgio (Marco Ricca) se assemelha com a de Lucas. Após sua apresentação como homem frio e racional do business parte uma grande empresa ligada à construção imobiliária (herdada de seu pai), o desdobrar narrativo permite algumas aproximações com uma outra faceta sua, como se vê em seus discos de Belchior ou Gal Costa em vinil, tal como sua tentativa de implementar um projeto pessoal artístico no meio do plano arquitetônico que sua empresa é responsável. 

Por outro lado, os dois se divergem para caminhos opostos, porque no filme de Marcelo Lordello a intenção é fazer um denso estudo de personagem que está preso dentro de sua própria criação patriarcal, investigando este homem intransponível que raramente deixa transparecer suas sensibilidades dentro de uma aparência moldada para ser dura em um contexto de disputas de masculinidade. Exibido no Olhar de Cinema 2022, com exibição que contou com a presença de Lordello e parte da equipe, o diretor chegou a pedir brevemente antes de seu início, ainda que em tom de brincadeira, um pouco de paciência com Paterno e sua aspereza. De fato, essa é uma das consequências de uma narrativa que se propõe a acompanhar um personagem sem a pretensão de que se crie empatia por ele. Ao invés disso, é um filme que quer criar situações específicas e contextos desgastantes que levem à exposição de uma patologia do “macho de classe média”, sendo Sérgio a corporificação de tantos outros homens aqui representados, por meio de uma câmera que se coloca na frente do grande ator Marco Ricca e vai observando seu duelo interno de forças, entre o papel que ele aprendeu a desempenhar durante a vida e um outro lado mais humano. 

Em sua introdução, o diretor também mencionou que em Paterno haveria justamente um olhar para a complexidade de um personagem criado no patriarcado, mas que também poderia mostrar outras facetas, talvez até em um caminho da autoconsciência¹. Honestamente, tenho minhas dúvidas se de fato esses elementos indicativos existem no filme para além de meras passagens periféricas que mal acham espaço na narrativa, como é o caso dos discos de vinil. Como Marco Ricca é um grande ator, é possível enxergar por trás de suas expressões a expansão de dilemas que não estão tão concretizados no filme, com um tremelique nos seus lábios já dizendo mais que mil palavras em um roteiro. Por parte da narrativa, talvez o melhor momento que ela encontre, em imagens, para tornar complexa a questão, é na ida de Sérgio ao espaço da universidade. O personagem, seguido de perto pela câmera em suas costas, investiga uma professora e todo o seu processo de gato-e-rato se torna também uma volta nostálgica para aquele lugar de pensamento abandonado por ele ao longo da vida.  

Ainda que dentro de uma perspectiva de cinema realista, Paterno é cercado por metaforizações que o engessam dentro de uma existência simbólica, criando a sensação de que diversas de suas cenas são antes pensadas para serem a metáfora do que parte orgânica da narrativa. Este é o caso de seu próprio fim, que, na tentativa de falar sobre o imobilismo de Sérgio, mostra ele preso, em seu carro, no trânsito de Recife, sob o som de buzinas, enquanto seu filho, em estado de ruptura com este ciclo, sai andando.  Uma cena como essa é tão evidente em sua metáfora que isso impede a dramaturgia de funcionar em um sentido imediato e mais genuíno. O problema em se fazer um cinema de metáforas é que dificilmente se está criando algo novo, mas que existe a partir de uma gramática pronta em um dicionário. 

Há outras menores escolhas que também passam por uma certa relação de obviedade, como Sérgio isolado em casa do resto da família com as portas dos quartos fechadas para ele, assim como a insistência na sua preferência pelo whisky ao invés do vinho, que representa sua figura de “machão”. Similarmente, isso se reflete na encenação, quando o filme usa do extraplano para simbolizar figuras que não possuem espaço naquela narrativa, como a voz da empregada doméstica ou dos manifestantes no trânsito, outra escolha de mise-en-scène já manjada por qualquer cineasta que está fazendo um cinema crítico à classe média.

Por outro lado, é interessante como a encenação de Lordello consegue expor como, além do óbvio patriarcado na qual ele faz parte, Sérgio faz parte de outras relações de superioridade que também estão impregnadas nele, principalmente dentro de uma lógica de classes, que por sua vez desemboca na dinâmica racial. Pelo paralelismo entre a cena inicial de negociação pelo valor da casa com a vez em que ele vai oferecer um valor à amante de seu pai, vê-se que, para Sérgio, o contato com uma “classe inferior” se daria sempre na maior impessoalidade possível, pautada pelas relações de dinheiro, sem espaço para humanismo — e é justamente a quebra disso que permite sua autoconsciência  a partir do diálogo com a professora e a descoberta do passado de seu pai. 

Igualmente, há uma cena com Marco Ricca e Thomas Aquino (que em 2017 ainda nem tinha feito o seu “Pacote”, em Bacurau), na qual a encenação — seja como movimento consciente de encenação ou apenas um desdobramento natural — consegue revelar um outro distanciamento, com o posicionamento do rosto de Ricca, um homem branco, em primeiro plano, enquanto o de Aquino, um homem negro, está em segundo plano, no banco de trás, justamente em um momento no qual Sérgio põe o outro personagem em seu “devido lugar”. 

Como várias outras obras exibidas no festival, Paterno faz parte de um corpus fílmico regido pelo desejo de expor uma sensação de imobilidade, por meio de uma narrativa que dá uma volta para levar o personagem ao mesmo estado de aprisionamento de sua a situação inicial. Obviamente, cada caso é um caso e há filmes em que isto funciona e outros em que não. No caso do longa recifense, a sensação é a de que se está vendo um longo diagnóstico de um mal estar social já conhecido — e aí vale dizer que sua produção data de 2017, com o gap de 5 anos desgastando sua existência antes mesmo de seu lançamento, dentro da filmografia brasileira —  e não está muito interessado em ir além de uma implosão, usando da narrativa cíclica como porto seguro. Deste modo, Sérgio mostra ser incapaz de se permitir fazer parte de uma mudança, ainda que vislumbre ela acontecendo e mostre o reconhecimento de estar em lugar límbico posto em crise.

¹- O diretor Marcelo Lordello não falou exatamente tais palavras. Já se passaram alguns dias desde o momento da exibição de Paterno e o momento de escrita da crítica, então reproduzo imprecisamente baseado na memória da ideia geral que ele quis falar.

Paterno (2022) — Brasil, França
Direção: Marcelo Lordello
Roteiro: Marcelo Lordello, Fábio Meira
Elenco: Marco Ricca, Gustavo Patriota, Thomas Aquino, Rejane Faria, Nelson Baskerville, Selma Egrei, Fabiana Pirro
Duração: 110 mins.

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