O mundo não soube apreciar Parceiros da Noite quando de seu lançamento, e tanto não soube que constantemente a revisão crítica tem reconhecido o valor do filme. Os motivos da rejeição são óbvios. Como falar, dentro de uma Hollywood conservadora, a respeito da liberdade sexual entre homens em cabines no centro de Nova York? Ora, a proposta vanguardista de William Friedkin é no mínimo arriscada. O grande ponto da questão é que o longa-metragem foi produzido no lugar errado e na hora errada. Pobre de Friedkin, que é um hollywoodiano nato. Não fosse ele desse nicho, o seu filme inevitavelmente estaria em outra posição. Basta que comparemos a recepção de sua película com outras produções, como, por exemplo, Querelle, de Fassbinder, ou mesmo com o perfeito Beau Travail, de Claire Denis, todos na mesma pegada e que, estando fora do circuito comercial, atingiram status de “obras-primas” e coisas parecidas. O seu contexto sócio-histórico explica, então, a razão do espanto diante do lançamento de Cruising.
Veja que a cena de entrada para a trama ocorre já num tom de polêmica: dois homens num quarto, um deles nu deitado de bruços numa cama e amarrado dos pés à cabeça. A gente sabe o que vai acontecer e a câmera contempla, aguardando. Lentamente, o homem que está em pé aproxima-se como se fosse deitar sobre o seu parceiro – que está assustado – e então o apunhala com dez facadas. O que houve? Não tarda para que entendamos que este é o primeiro de uma série de assassinatos cometidos dentro de uma comunidade gay em Nova York. Imediatamente, Al Pacino aparece em cena no papel de um policial investigativo que, à paisana, tentará encontrar o algoz, adentrando cinicamente neste submundo.
Isto é o que devo chamar de bondage-movie, cujo desenrolar dramático adquire feições de um psicodrama policial numa fábula envolvendo assassinatos, desejo, poder e violência. Há um toque de exagero erótico no filme, contudo, sem prejuízos no todo, uma vez que oferece um prazer estético ao insistir na ideia do corpo masculino como objeto de desejo, de modo que a cinematografia faz questão de realçar este aspecto, com uma fotografia apuradíssima e uma câmera desinibida que é tão pertencente ao submundo quanto os personagens que ela filma. A mise-en-scène adequa-se ao tema que representa e mostra-se relevante na sua formatação cênica. Aos poucos, a direção modela passo a passo a sua ideia de filme.
A propósito, a noite é a grande articuladora do clima fílmico e a paleta, para representar o submundo, opta sempre por cores escuras, com muitas sombras e um tom molhado, que, de novo, enegrece a imagem. A fotografia opera de modo intenso, relacionando-se de maneira plena com a proposta dramática. É, de fato, um giallo e tem todas as características temático-estéticas de um. No entanto, parece que o curso das ações do enredo deixa de lado o núcleo duro que dá feição a este gênero. Mas se analisada a trama percebe-se que é proposital que a investigação pareça ser deixada de lado em detrimento da incisiva exploração de outros aspectos estético-eróticos.
O cineasta é tão cínico quanto o seu assassino e nos engana em cada ato. Logo, não é verdade que o thriller seja negligenciado, ele está lá o tempo inteiro na figura de Steve Burns, o policial infiltrado. O suspense está revestido por um manto bem sofisticado de luz e sombra, que antes trabalha o envolvimento de seu personagem nesse meio e sua constante aderência a ele do que investe no estilo de caça-ladrão que estamos acostumados. Embora a cada vinte ou trinta minutos, que é o tempo entre uma morte ou outra, o filme nos lembre de qual gênero pertence, a busca pelo criminoso está envenenada por um mundo atmosférico absolutamente hedônico e sexual, nos levando a questionar a proposta investigativa, mas ela está presente em cada motivação fílmica. É que a ideia de uma estética própria do longa-metragem é muito superior a qualquer outro aspecto do filme.
Gosto da adesão que o Al Pacino tem ao personagem, conferindo ao seu policial um charme bem dissimulado, com ambiguidades características de um anti herói. Essa dualidade também contamina a execução do filme, concluindo um enredo indefinido. Após cada cena de assassinato, a seguinte coloca em foco o personagem de Al Pacino. Seria ele o algoz ou seria uma armadilha forjada pelo próprio cineasta para que julguemos a pessoa errada? Acaba que nos embolamos na interpretação do filme ao nos deparar com um final absolutamente indecifrável e aberto A fábula fílmica não desvenda o mistério. E importa quem é, afinal? Talvez o enigma seja mais interessante do que a resolução.
Mas ora, se Al Pacino realmente é o assassino de que nos reportamos ao longo da película, a sua motivação é puramente um desejo reprimido, que se torna pulsão de morte trazida à tona pela negação daquilo que ele mesmo sente. Quando seu chefe lhe pergunta no primeiro ato se já se envolveu com um cara, ele gagueja num tom sugestivo – e nega. E então vamos à sequência dos fatos: ele está introduzido cada vez mais ao submundo da perversão e mostra-se muito entretido no ambiente noturno. A solução encontrada para refrear o seu desejo pelo corpo masculino é matando-os de maneira cruel logo após cooptá-los para transar. Veja que todas as vezes ao chegar em casa, depois de suas fatídicas noites bacantes, ele sente a necessidade de acasalar violentamente com sua namorada e por que de modo tão ríspido senão para reafirmar uma masculinidade aparente e reprimir o seu desejo homoerótico?
Nos atos seguintes, sua namorada diz que ele mudou e parece não desejá-la mais, Steve confirma a hipótese, rompendo com ela numa fala interessante, retratando que seu trabalho o está afetando. Bem, se Steve Burns aos poucos deixa a sua máscara cair é porque o seu desejo encontra-se num estado irrefreável e a única saída possível para que engane a si mesmo é matando aqueles com quem dorme, utilizando de seu poder de sedução para praticar uma dupla violência: a sexual e a física, esta última que eliminaria os vestígios das pessoas com as quais ele se relacionou, aliviando-o da culpa de uma homossexualidade vibrante mas escondida. Mas se há um assassino, ele não é o único, mas um deles.
Cruising não é perfeito mas tenta ser despojado na sua proposta total e funciona, entregando uma soberba fotografia, um roteiro whodunnit que opera como uma roleta-russa introduzindo temáticas muito pertinentes num manejo estético invejável e personagens engajados com suas personas e ações, resultando num clímax pelo avesso, caracterizando a película através da irresolução dramática, não fechando propositalmente o arco narrativo. Uma película arriscada para entrar na década de 80, os heróis imperfeitos de Cruising vivem num extremo em que o prazer confunde-se com a ruína e o gozo está intimamente ligado à ideia de morte, isto é, de pulsão de morte – e saciá-lo é uma necessidade quase instintiva. Enfim, emblemático.
Parceiros da Noite (Cruising, Alemanha Ocidental, EUA, 1980)
Direção: William Friedkin
Roteiro: William Friedkin (baseado no romance Cruising de Gerald Walker)
Elenco: Al Pacino, Paul Sorvino, Karen Allen, Richard Cox, Don Scardino, Joe Spinell, Jay Acovone, Randy Jurgensen, Barton Heyman, Gene Davis
Duração: 102 min.