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Crítica | Paper Girls – 1ª Temporada

Entregadoras de autenticidade.

por Ritter Fan
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Paper Girls é uma das poucas HQs de Brian K. Vaughan – esta em parceria com Cliff Chiang – que eu não li. Aliás, minto. Li apenas o primeiro encadernado e, apenas com base nele, posso dizer que a adaptação para o Amazon Prime Video capitaneada por Stephany Folsom pareceu-me muito próxima do material fonte, pelo menos em seu começo. Não que eu particularmente me importe com isso, mas meu receio era que todas as “complicações” típicas do autor fossem ser defenestradas em favor de uma história tipicamente adolescente. Ao acabar de assistir os oito episódios da primeira temporada da série, o que posso dizer é que é justamente no lado puramente pré-adolescente de Paper Girls que a série se destaca ao ponto de tornar o lado da ficção científica, pelo menos para mim, apenas um detalhes simpático, que é sempre bom ter, mas não mais do que isso.

Afinal, no lado sci-fi, o que temos é mais uma história que constrói em cima de um dos artifícios mais bacanas e, por isso mesmo, mais usados no gênero, ou seja, a viagem no tempo. Sem entregar muito mais do que vemos no primeiro episódio e do que está no trailer, a premissa coloca quatro meninas de doze anos que entregam jornais em 1988 e que acabaram de se conhecer como viajantes do tempo depois que elas inadvertidamente se envolvem em uma “guerra temporal” entre dois grupos, um que se veste de preto e parece formado por adolescentes com os rostos queimados e que parecem Rebeldes e outro que se veste de branco e parece, só para fins de comparação imediata, com o Império (a comparação que faço é com Star Wars, obviamente…). Quando a poeira do episódio inaugural assenta, as quatro estão em 2019, na casa de uma delas, com a versão de 2019 de uma delas bem ali à sua frente…

O que segue, daí, é a tentativa de compreensão sobre o que é exatamente a guerra temporal, quem está do lado do Bem e quem está do lado do Mal e, principalmente, como voltar para 1988. Mas, como disse, todo esse lado sci-fi é detalhe, até porque os roteiros simplificam sobremaneira as regras das viagens, com as versões adultas das crianças não lembrando da viagem ocorrida, o que compartimentaliza cada contato e evita a aplicação mais direta e potencialmente desenfreada do Efeito Borboleta. Com isso, o que resta ao espectador é a maravilhosamente bem trabalhada dinâmica entre as quatro meninas e delas com os adultos ao seu redor, especialmente suas contrapartidas mais velhas.

Temos que primeiro lembrar que as protagonistas são quatro meninas que só convergem em razão de seu trabalho matinal: a entrega de jornal, cada uma usando sua bicicleta, no bairro em que moram. Antes do começo da série, elas não são amigas. Algumas ali eram apenas conhecidas, com a descendente de chineses Erin Tieng (Riley Lai Nelet) funcionando como a “Nova Garota”, em seu primeiro dia como entregadora e levando as quatro a se unirem para se protegerem no dia 1º de novembro, conhecido pelas veteranas como Hell Day, por ser o dia seguinte ao Halloweeen, com muita gente mais velha ainda fazendo “travessuras” com fantasias de serial killers. O restante do grupo é formado pela geninha afrodescendente Tiffany “Tiff” Quilkin (Camryn Jones), pela rebelde fumadora de cigarros e menos abastada Mac Coyle (Sofia Rosinsky) e, finalmente, pela judia rica KJ Brandman (Fina Strazza), mas é importante não cair em rótulos aqui, já que o desenvolvimento delas é honesto e muito bem trabalhado ao longo dos oito episódios que as colocam diante de seu próprio futuro, fazendo-as se verem com orgulho, estranhamento e, também, desapontamento.

Esse é, aliás, o coração da série e talvez a principal razão pela qual a viagem no tempo é tratada de maneira simples, permitindo o contato “virgem” entre diferentes versões das mesmas personagens: a comparação entre quem somos e quem nos tornamos com o que somos e quem desejamos nos tornar. Afinal, todos nós, de uma forma ou de outra, olha para o futuro imaginando isso ou aquilo, nem que seja, como Mac diz a certa altura, completar 18 anos para poder sair de casa e nunca mais voltar. A comparação com o que acabamos nos tornando só é possível em retrospecto, mas, aqui, as meninas aprendem sobre seus respectivos futuros já com 12 anos. Erin, por exemplo, que deseja ser senadora dos EUA, descobre que seu “eu” de 2019 ainda mora na mesma casa que seu “eu” de 12 anos, não é casada, não tem filhos e nunca fez nada que ela, de 12 anos, dê valor. Esse duro choque entre desejo e realidade, entre almejar algo e deparar-se com outra coisa bem diferente é o que realmente faz a temporada funcionar muito bem, com cada uma das descobertas das jovens sendo bem desenvolvidas, ganhando valor e importância entre elas e, em última análise, aproximando-as ao ponto de fluidamente transformar quatro meninas que se conhecem de longe em quatro melhores amigas no intervalo de oito episódios.

A quadra de atrizes mirins merece todos os aplausos possíveis, pois cada uma delas se entrega sem reservas à sua respectiva personagem. Vemos o verniz de durona que Sofia Rosinsky constrói para sua Mac desmoronando aos poucos, camada por camada, na medida em que ela aprende sobre seu futuro, ao passo em que percebemos a fúria incontida que Fina Strazza imprime em sua KJ transformando-se na exata proporção em que ela descobre o que um dia ela será e começa a fazer as pazes com isso. Igualmente, Camryn Jones e sua faladeira Tiff, menina que tem seu futuro absolutamente mapeado aos 12 anos, é um misto de felicidade e decepção quando aprende o quão próxima chegará de seu sonho. Por último, mas não menos importante, a quieta Riley Lai Nelet é um poço de decepção ao descobrir quem ela não se torna, mas também de orgulho, quando aprende do que ela é capaz, em um misto doloroso, mas muito bonito. Há honestidade no trabalho dessas promissoras jovens e isso é raro de se obter nesta tenra idade e de forma tão harmoniosa.

Voltando brevemente para o lado sci-fi da narrativa, a produção está mais para a linha da modéstia, com os personagens que travam a guerra temporal quase não aparecendo mais do que aqui e ali só para nos lembrar que ela existe e que é importante para a história. O CGI, em sua grande parte, limita-se a colorir o céu de rosa quando os buracos de minhoca aparecem, com apenas uma ou outra cena, uma mais no começo que se relaciona com o silo de um fazenda e outra mais para o final, que se relaciona com o estranho meio de transporte dos membros do “Império”, realmente exigindo mais orçamento que resulta em uma boa entrega, boa o suficiente para fazer com quem se importe muito com isso fique feliz e para permitir que a história retorne ao que realmente importa.

Paper Girls deixou-me fisgado. As entregadoras de jornais de 1988 – personagens e atrizes – são grandes achados e espero que elas tenham chance de continuar mostrando seu trabalho em temporadas futuras. Caso negativo, já que, hoje em dia, renovação de séries é algo com que não conto mais, pelo menos terei os quadrinhos de Vaughan e Chiang para ler e descobrir como tudo continua e acaba.

Paper Girls – 1ª Temporada (EUA, 29 de julho de 2022)
Desenvolvimento: Stephany Folsom (baseado em quadrinhos de Brian K. Vaughan e Cliff Chiang)
Direção: Georgi Banks-Davies, Destiny Ekaragha, Karen Gaviola, Mairzee Almas
Roteiro: Stephany Folsom, Christopher Cantwell, Christopher C. Rogers, Lisa Albert, K.C. Perry, Kai Yu Wu
Elenco: Camryn Jones, Riley Lai Nelet, Sofia Rosinsky, Fina Strazza, Adina Porter, Ali Wong, Nate Corddry, Sekai Abenì, Jason Mantzoukas
Duração: 354 min. (oito episódios)

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