Pantera Negra é um filme sobre nobreza.
Apresentando o tão aguardado reino de Wakanda, a Marvel aproveita para colocar seus dilemas sobre heroísmo na pele de um homem prestes a se tornar rei. Seguindo os eventos de Capitão América: Guerra Civil, onde fomos apresentados ao então príncipe T’Challa, esse primeiro filme solo do Pantera tem tudo o que a Marvel faz de melhor: uma incrível apresentação de mundo, a incansável jornada edificante do herói, carismáticos coadjuvantes, bom humor e leves reflexões que até podem dar pano para manga a quem quiser imergir mais.
O filme traz, contudo, alguns velhos deslizes. Mas já já chegamos neles.
Antes, longe de ser o melhor filme do MCU ou um marco histórico como se anda dizendo nas esquinas da internet, é preciso destacar Pantera Negra como mais um belo acerto do estúdio. Focando a lente para apresentar Wakanda, a Marvel construiu, novamente, um universo cheio de exuberância, pulsante do começo ao fim da película e capaz de gerar no espectador aquele desejo de ver infinitas estórias do lugar.
Talvez seja até mais justo comparar a estética desta nação africana com o universo cósmico ou místico, ainda que Wakanda fique no nosso planeta tanto quando a cinzenta Nova Iorque dos Vingadores. Pantera também não é o filme mais bonito do universo cinematográfico da Marvel – ainda fico com Guardiões, Doutor Estranho e Ragnarok – mas o constante contraste entre o negro e o roxo, do traje do herói aos céus místicos, do líquido ritualístico às ruas coreanas, somado às cores quentes das planícies do país e de cassinos luxuosos, é simplesmente de encher os olhos.
O que faz de Pantera Negra, enfim, um filme de bom para ótimo?
Nada da belíssima construção de Wakanda valeria se Chadwick Boseman não conseguisse carregar nas costas o nome do filme. E ele cumpre a missão com absoluta tranquilidade. Faz até parecer fácil o papel de um jovem rei, impondo-se com a mesma serenidade que mostrou em sua estreia sem deixar de mostrar a fragilidade que a posição oficial de Pantera Negra traz consigo.
É deste ponto de partida que Ryan Coogler, dirigindo e co-escrevendo a obra, cria uma trama tensa em sua essência. T’Challa herda a tradição de seus antepassados e tudo de bom e ruim que vem com ela. Ao mesmo tempo, é cobrado por si e por outros para olhar para o novo, como a tecnologia de vibranium que fez de Wakanda a nação mais rica do mundo. Será o momento de dividir essa dádiva com outras nações? Ou pérolas seriam jogadas aos porcos?
A coisa complica quando Ulysses Klaue (Andy Serkis) e Erik Killmonger (Michael B. Jordan) aparecem nublando o cenário e adicionando um pouco de ambiguidade ao enredo. A política isolacionista do país passa então a rimar com o próprio isolamento do rei de Wakanda, a partir do momento em que seu idealismo familiar balança. O Pantera Negra, enfim, mostra um conflito que vai além da superação do ódio.
Aliás, exatamente por ter vivido o que viveu com Zemo no filme anterior – a busca cega pela vingança – T’Challa não titubeia. Suas dúvidas caladas até podem enfraquece-lo momentaneamente, mas a piedade e a convicção são os dois alicerces do que faz o Pantera mais do que um simples governante.
De forma inteligente, Coogler estabelece o primeiro herói monarca do MCU mostrando, basicamente, apenas o controle que o personagem possui de seu entorno. Para quem conhece os quadrinhos, a mistura entre tecnologia e magia de Wakanda não é novidade. Vê-las integradas nesse universo, todavia, sem qualquer aparente conflito entre ritual e ciência, entre hierofanias tribais e civilização ocidental, ambas dominadas harmoniosamente por T’Challa e sua corte, acaba sendo por si só uma espécie de carta de apresentação deste rei que encarna, a bem da verdade, o conflito de todo homem: entre o passado e o futuro, o que conservar e o que reformar? Como lidar com reacionários e revolucionários que ignoram ora a necessidade de reforma, ora a necessidade de conservação?
É aqui que as atrizes coadjuvantes brilham talvez tanto quanto Boseman. Danai Gurira como a general Okoye rouba com elegância algumas cenas. Forte, carismática e badass, ela simboliza, sobretudo, o respeito à tradição e a força institucional de Wakanda, além de servir para cenas de ação que fazem nossos olhos brilharem. Shuri, irmã do rei, serve como principal alívio cômico em meio ao arquétipo da “gênia dos gadgets por trás do herói mascarado” que Letitia Wright encarna com a leveza necessária.
Apenas a Nakia de Lupita Nyong’o deixou a desejar um pouco no lado dos mocinhos, mais por culpa da trama em si do que da maravilhosa atriz. Martin Freeman interpreta Martin Freeman, para variar (desculpem a maldade).
Mas antes de irmos aos vilões – o que nos levará necessariamente aos aspectos negativos do filme – há mais algumas belezas em Pantera Negra a serem lembradas. Os trailers, é verdade, já entregaram muito da beleza visual das tribos de Wakanda. Mas admirar o figurino, a maquiagem e os penteados que diferenciam não só cada tribo, mas cada indivíduo, traz realmente um encanto que deixa a nação do Pantera ainda mais viva em nossa memória.
Além do mais, em certas cenas de batalha campal são tais vestimentas que nos ajudam a identificar o que está acontecendo. Lembrei de Ran, de Kurosawa (desculpem a heresia), em uma escala muito menor.
A ação em si, pela terceira vez, devo repetir: não é a melhor do MCU. Felizmente, porém, Coogler opta por inúmeros duelos corpo a corpo que instigam o espectador. Uma particular cena em um particular cassino, protagonizada por uma particular personagem, é puro espetáculo, desses que pagam e ultrapassam o valor do ingresso. Eu já disse que a general Okoye é uma personagem incrível??
Mas nem tudo são flores.
O modelinho Marvel de se fazer cinema, é sabido, traz consigo previsibilidade, vilões fracos e excessivo uso de CGI. Aqui não é diferente. Lá pelo meio do filme as peças logo se encaixam e o ritmo cai um pouco. Não chega a se arrastar, mas chega a cansar por breves minutos.
Também é possível que eu esteja ficando velho e o problema seja meu, mas animação digital me causa um sono instantâneo. Coloque-a dentro de um cenário escuro e é capaz de eu até sonhar. Decisões incompreensíveis em filmes de herói – ou de ação – em geral, ainda que recorrentes, para a minha desgraça.
O ponto, todavia, que de fato mais me incomodou, foi mais uma vez a utilização de vilões fracos, mesmo que estejamos contando com dois atores de alto calibre. É verdade que a motivação e a postura política tanto de Klaue quanto de Killmonger deixam o filme alguns graus mais denso e interessante. Servem, também, para a própria jornada de herói que T’Challa, como em todo filme de origem, deve passar. Mas veja só porque me incomodo, caro leitor.
É lugar comum se repetir por aí que alguns vilões têm motivações compreensíveis e métodos extremos. Daí, dá-se um salto e começa a circular a noção de que o vilão tem profundidade e ambiguidade distintas da grande massa de vilões que só estão ali para apanhar. Essa bobagem toda é o que eu batizei de síndrome de Magneto.
O sr. Magneto dos famigerados filmes dos X-Men, como é sabido, foi criado baseado no radical Malcom X, em contraponto ao Professor X, o Luther King telepata. Mas o que fez Erik Lensher se tornar tão querido entre os fãs, pelo menos nos cinemas, foram filmes e mais filmes onde sua personalidade era trabalhada com esmero e cuidado. Ainda acho difícil ver relação mais magnífica em filmes de super-herói do que a de Fassbender e McAvoy em Primeira Classe e sua sequência.
Aí vem a Marvel, cria dezenas de vilões de um filme só e ainda tem gente que vê profundidade em alguns deles, cazzo! Os melhores vilões da Marvel estão na Netflix, exatamente por terem tempo de desenvolvimento. Boca de Algodão, Fisk e Killgrave dão de goleada na galerinha vilanesca asquerosa de Pantera Negra.
Mas, uma coisa admito: o ressentimento que esse núcleo traz ao filme é essencial para estabelecer a verdadeira marca do rei T’Challa e da obra em geral. E isso é lindo de se ver e ainda mais gostoso de se refletir no pós-filme. Como isso é uma crítica sem spoilers, vou me segurar e parar de viajar em cima.
Apenas mais dois pontos, positivos e negativos ao mesmo tempo: Pantera Negra é um filme com poucas piadas, principalmente se compararmos à esculhambação do ótimo Ragnarok. Contudo, não é um filme seríssimo. A leveza de seu tom – pode parecer implicância, mas não é – até permitiria um pouco mais de alívio cômico. Eu não sou desses que reclama do humor da Disney, da Marvel ou de Star Wars.
E uma crítica de Pantera Negra não pode passar sem uma crítica da trilha sonora de Pantera Negra. Como teremos um texto especial para isso, apenas dou alguns pitacos: eu não conheço Kendrick Lamar (não fique triste, Handerson), produtor da trilha. A música, todavia, alternando entre forte percussão e melodias épicas, é admirável. Talvez seja exagerada, por vezes, ao tentar ditar o pujante tom de alguns momentos. Menos seria mais, em alguns casos.
Por fim, mais um par de parágrafos para uma questão um pouco mais incômoda, mas que me parece necessária. Do hype de anos às primeiras críticas, Pantera Negra vem se estabelecendo como marco de inclusão, representatividade e diversidade, visto assim por mudar o jogo ditado por uma suposta perspectiva dominante do homem branco. Críticos e mais críticos tomam para si o papel de anunciadores dessa novíssima justiça social feita após anos de colonização disfarçada em Hollywood, capaz de impossibilitar um elenco predominantemente negro em filmes de heróis, por exemplo. Sheryl Oh – eleita por mim como o amálgama perfeito desse tipo de bobagem propagada em terras gringas e tupiniquins – colunista do ótimo FilmSchoolRejects, dedicou uma coluna especial ao absurdo fato de Pantera Negra e Capitã Marvel serem postergados para que houvesse espaço para Homem-Aranha: De Volta ao Lar e Homem Formiga e Vespa darem as caras – dois filmes, como ela bem ressalta, protagonizados por super-heróis brancos do sexo masculino. Em resumo, a lavagem branca – termo dela – cometida pela Marvel acaba barrando a representatividade e a diversidade do mundo em seus filmes.
Todo crítico quer ser um pouco mais famoso do que já é – e uma militanciazinha ajuda a aparecer. Dormir com a consciência de que nosso trabalho de formiguinha foi, pelo menos, ético, é um alento. E sempre desconfie de gente que se diz ética e consciente politicamente, caro leitor, mesmo que não o digam explicitamente por “modéstia” – é o que Nick Fury dizia no Soldado Invernal: desconfie de quem rejeita prêmios. Escrever textos, afinal, se assemelha mais à pregação no deserto do que à revolução, para desespero de todos – essas efêmeras palavras vão se perder no vento em questão de dias ou, com sorte, semanas.
A coisa só piora se o artista faz de sua obra meio militante. Definitivamente, esse não é o caso de Pantera Negra. Definitivamente. Há muita gente que já vai míope para a sessão desse filme, seja para bradar contra essa “Marvel Marxista Gramsciana Politicamente Correta“, seja para bradar a favor da cultura negra. Do primeiro tipo, espero que possamos acordar que nosso bom senso dispensa mais comentários. De dogmáticos paranoicos é fácil falar mal, pois sua fragilidade se escancara. Difícil é criticar quem usa o disfarce do discurso inclusivo para pagar de justiceiro social cheio de altruísmo. Como criticar quem defende a tal cultura negra? Alguém pode me responder se Machado de Assis e Cruz e Sousa fazem parte da cultura negra? E se o blues é intrinsecamente negro, seria Led Zeppelin uma banda de farsante se apropriando culturalmente de um bem de outra raça?
A esses, como é o caso da querida Sheryl Oh, não adianta recomendar uma segunda olhada em Pantera Negra. Eles jogam o jogo da soma zero – se eu fracassei é porque alguém teve sucesso. O mundo e a vida giram em torno de injustiças a serem sistematicamente reparadas – “por direito!” Bradam eles. A pobreza da África é estritamente culpa da riqueza dos colonizadores – isso até me lembra o discurso de alguém do filme… Desapontados com a vida prática, tornam-se ressentidos em suas vísceras.
Faço um apelo, portanto, a quem ainda não foi assistir: não vista a camisa do bom mocismo nem recorte Pantera Negra do panteão de heróis do qual ele faz parte. Antes de ter um elenco de estrelas negras, o filme de Ryan Coogler tem um elenco cheio de atores cujos nomes, ideias e pensamentos são diferentes e, por vezes, discordantes. Antes, em resumo, de apontar como Boseman e B. Jordan no mesmo filme é uma conquista para todos os atores negros, ouça, com atenção – faça esse esforço – o que seus personagens têm a dizer e mostrar sobre temas humanos universais, trágicos e muito, mas muito antigos. O mundo não começou no século XIX.
- Crítica originalmente publicada em 07 de fevereiro de 2018.
Pantera Negra (Black Panther) – EUA, 2018
Direção: Ryan Coogler
Roteiro: Ryan Coogler, Joe Robert Cole
Elenco: Chadwick Boseman, Michael B. Jordan, Lupita Nyong’o, Danai Gurira, Martin Freeman, Daniel Kaluuya, Letitia Wright, Winston Duke, Sterling K. Brown, Angela Bassett, Forest Whitaker, Andy Serkis, Florence Kasumba, John Kani, David S. Lee, Nabiyah Be, Ashton Tyler, Denzel Whitaker, Atandwa Kani
Duração: 134 min.