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Crítica | Paloma (2022)

Em um jogo de forças entre a realidade do preconceito e o lúdico, Marcelo Gomes opta por deixar sua protagonista transexual sonhar.

por Michel Gutwilen
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A base narrativa de Paloma se encontra em uma das muitas contradições que marcam a existência social do povo brasileiro. Quando Marcelo Gomes joga luz na história real de Paloma, transsexual brasileira que se casou na Igreja, teoricamente proibido, ele também está se buscando um entendimento indutivo, que sai do particular ao geral, do que seria esse Brasil enquanto organismo conflitante em que política, identidade, sexualidade, moral e religião se misturam. 

Pensando em um recorte de filmes brasileiros recentes sobre a transexualidade a partir do longa Madalena (Madiano Marcheti) e o curta Inabitável (Enock Carvalho, Matheus Farias), a história do gênero se encontra tendo como ponto de partido da ausência, como se no país que mais mata transsexuais no mundo não fosse possível existir, somente sentir falta, precisando recorrer à memória para permitir que suas personagens vivam. É preciso fabular para trazer aquelas personagens de volta ao mundo imaterialmente. Bons filmes dentro de suas propostas, eles não poderiam ser mais opostos ao Paloma de Marcelo Gomes.  Aqui, a existência é um pressuposto e isso já muda tudo, pois o filme é mantido por uma chama intensa que faz a vida ainda fazer sentido, como a última forma de resistência para se manter viva, que é a possibilidade de sonhar e em cima disso Gomes se agarra pela maior parte do tempo, em um gesto de amor à inocência de sua protagonista. Talvez um momento de Paloma resuma bem a atitude do diretor: quando Paloma precisa deixar sua filha pequena no ambiente de trabalho da melhor amiga, um puteiro, na hora de passar do ambiente ao quarto fechado, é pedido que a garota feche os olhos até chegar. Preservar a inocência diante da realidade do mundo é essencial.

Como se fosse um campo de batalha entre a primazia da realidade brutal e o mental lúdico de sua protagonista, Gomes privilegia o segundo, mas não a ponto de se tornar um alienado em relação ao mundo como ele é, inclusive apresentando outros aspectos da vida da personagem que vão além da transexualidade. Um bom exemplo é a situação de analfabetismo da personagem, que nunca chega a ser uma questão lidada verbalmente, mas possui seus momentos de progressão. Primeiramente, descobrimos que ela não sabe escrever quando ela dita a carta ao Papa para a amiga, depois que ela não sabe ler quando pede ao menino para ler a carta do padre. Por fim, vemos ela treinando sua caligrafia para escrever seu nome nos votos de casamento. Então, quando ela finalmente escreve seu nome na cena da cerimônia, com seu marido dando suporte à sua mão trêmula, existiu toda uma evolução neste micro aspecto da vida da personagem até aquele momento que poderia passar despercebido, mas dá uma maior camada de emotividade à cena. No mesmo sentido, o arco trabalhista de exploração da personagem consegue ter sua ideia de início e fim, sem nunca soar que está ali como se o filme tentasse abarcar assuntos demais, mas entendendo que aquela existência de vida trans é inevitavelmente uma vivência de uma classe explorada, materializando na realidade de classe sua questão identitária. 

Então, Paloma é um filme muito simples no sentido mais lisonjeiro possível. Para fabular em cima do sonho casamenteiro de sua personagem, Gomes recorre menos à interferência exterior de mise-en-scène para gerar seu tom lúdico e mais a uma confiança na expressividade de sua atriz, Kika Sena, como se ele genuinamente acreditasse que ela pudesse conseguir revelar as mais sinceras emoções diretamente a partir de seu rosto — e ela revela. Por isso, um dos grandes momentos da obra é quando Paloma está ditando para sua amiga uma carta endereçada ao Papa para pedir permissão ao seu casamento. Por mais desconectada do real que seja a cena, importa que a câmera de Gomes acredite e permaneça filmando esse ato, sem cortes, e Kika, e a própria atriz, fale com a maior convicção do mundo, formando um pacto entre cineasta e atriz em busca do encontro da Pureza a partir da performance e o texto. Ou, de mesmo modo, quando Paloma está deitada de lado na cama, frontal para câmera, com seu marido em segundo plano, como se confidenciar a nós, sobre sua vontade de casar. Se o marido resmunga e nem vemos ele direito, desfocado, é porque importa que sejamos iluminados pelo genuíno sorriso da personagem enquanto pensa com amor no seu sonho.

Por mais que seja necessário interromper o sonho para voltar à realidade, é importante também pensar como este lado menos otimista é filmado (ou melhor, não filmado) por Marcelo Gomes. O preconceito existe e muito durante Paloma, mas nunca é exatamente uma figura personificada, sempre escondido de alguma maneira: os assassinos da melhor amiga não tem rosto (e a cena é poupada de imagens), as repercussões do casamento são vistas pela TV ou por uma tela de celular afastada, as fofoqueiras no ponto de ônibus estão de costas e desfocadas; a picape perseguindo ela é uma figura por si só. Afinal, enraizado na sociedade, principalmente no interior, ainda muito influenciado pela moralidade religiosa, o preconceito é também estrutural, então de nada adiantaria personificar em rostos de trabalhadores aquelas falas. 

Ao invés disso, ao filme interessa o que é contraditório, e por isso concentra na figura de Zé um estudo sobre mais um dos paradoxos brasileiros, apresentando este personagem que sente algo por Paloma, tanto ao nível carnal quanto emotivo (as cenas de dança não poderiam ser mais sinceras neste sentido), mas que ainda assim consegue entrar em curto-circuito com a pressão externa da sociedade. Igualmente, é muito curioso que a própria Paloma também tenha por si só suas próprias parcela contraditória, já que seus sonhos de casar são incompatíveis com suas ações de infidelidade, o que vai de encontro com todo o olhar do filme para esse olhar macro sobre a vivência social e também é uma humanização da personagem, mostrando como ela também é falível e não a moralize por isso. 

No fim, não é sobre Paloma ser uma histórias de fadas, porque uma hora todo sonho tem um despertar, mas o que vale em um filme como esse é menos como a história acaba definitivamente e mais a postergação do inevitável despertar, de saber o momento do corte do sonho para a realidade, mantendo ao máximo Paloma com um sorriso no rosto. E se um dia um sonho acaba, enquanto estivermos vivos é possível sonhar de novo.

Paloma (2022) — Brasil, Portugal
Direção: Marcelo Gomes
Roteiro: Marcelo Gomes, Armando Praça, Gustavo Campos
Elenco: Kika Sena, Ridson Reis, Anita de Souza Macedo, Suzy Lopes, Samya De Lavor
Duração: 104 mins

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