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Crítica | Paixão e Sangue (1927)

por Guilherme Almeida
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Nada como um bom filme de gângster, ainda mais quando se trata de Paixão e Sangue (1927), película que lançou o visual do gênero e foi dirigida com primor por Josef von Sternberg, um dos artistas mais inventivos da Hollywood clássica. Sem esse diamante, fica difícil imaginar o que seria de clássicos posteriores como O Inimigo Público (1931) e Scarface (1932), responsáveis por popularizar de uma vez por todas o submundo do crime nas telas de cinema. Mesmo com quase um século de idade, a obra continua moderna e atraente, unindo experimentação visual e ação bem amarrada, sem que uma contrarie a outra.

Sternberg teve dificuldades de adaptação ao mainstream americano. Sua estreia como diretor se deu com The Salvation Hunters (1925), uma espécie de poema visual que atraiu a crítica e chegou a ser considerado como experimento vanguardista; após esse sucesso inicial, seguiu-se uma série de fracassos na MGM, onde teve trabalhos interrompidos e não distribuídos. Quando, no entanto, ele é contratado pela Paramount como operador técnico de Filhos do Divórcio (1927), o estúdio fica impressionado com seu talento e assina o acordo para a realização de Paixão e Sangue, apostando as fichas no artista promissor.

A trama escrita por Ben Hecht, vencedora do Oscar de 1929, narra a ascensão e queda de Bull Weed (George Bancroft), gângster que tanto pode ser violento como generoso com seus próximos. Encontrando por acaso o beberrão Rolls Royce (Clive Brook), decide ajudá-lo, dando-lhe dinheiro, roupas e um papel no planejamento dos crimes. Mas Bull não esperava que se formaria um triângulo amoroso entre os dois homens e a bela Feathers McCoy (Evelyn Brent), que fica encantada com a elegância de Royce, tão diferente do bruto malfeitor. Paralelamente ao nó amoroso, corre ainda a rivalidade entre Bull e Buck Mulligan, dono de uma loja de flores e ligado ao banditismo. Depois que o protagonista mata seu inimigo, é condenado à morte e deve ser ajudado pelos comparsas para fugir à pena.

Como normalmente ocorre nos filmes mudos, temos aqui um grande caso de expressividade visual, cuja materialização mais exemplar é a atuação carregada dos atores, marcada pela pantomima. George Bancroft constrói um anti-herói cheio de inflexões faciais, gestos bem medidos que vão da sutileza ao estouro, terminando seu arco com características animalescas, cheio de sangue, suor e poeira. Ao lado dele, Evelyn Brent aparece com suas feições suaves, sendo retratada de modo angelical pela iluminação intensa e pelos primeiros planos belíssimos. O rosto é tido como veículo primordial das emoções dos personagens, exprimindo com grande poder de síntese os desejos e interesses de cada um. Às vezes, o didatismo de alguns planos-detalhe de objetos podem soar desnecessários, embora devam ser vistos com a devida perspectiva histórica.

Na mesma linha, a edição e a fotografia trazem a marca de Sternberg, inserindo numa narrativa tradicional toques de experimentalismo linguístico. Na sequência em que vemos um baile anual, o a montagem é acelerada num ritmo quase soviético, aproveitando um jogo de espelhos para distorcer as imagens e assim transmitir o furor da situação. Quando, por outro lado, Bull está sendo julgado, o tribunal é divido em luz e sombra, Bem e Mal, trazendo ainda angulações de câmera que mostram o poder da Justiça e o criminoso acossado. Principalmente a partir da segunda metade da projeção, a fotografia fica mais e mais estilizada, prefigurando uma estética noir que prima pela penumbra e aproveita os elementos cênicos como projeções dos dramas interiores.

Entretanto, se é clara a antecipação imagética de traços noir, cabe apontar uma diferença fundamental: em Paixão e Sangue, como aliás veremos em quase os todos os filmes de gângster da década de 30, existe uma separação clara entre as forças da lei e as forças contraventoras. O cinema americano dos anos 40 e 50 segue outro sentido, embaralhando o bem e o mal numa zona nebulosa irresolúvel. O filme de Sternberg traz um tom edificante que caminha rumo à moralização das personagens; o aparato institucional é aqui incorruptível e até ingênuo- e esse é dado incômodo para a sensibilidade atual, mais acostumada com uma estética do cinismo. Nesse universo perfectível mesmo Bull consegue encontrar redenção após se deparar com lealdade e amor verdadeiros.

Antes de escrever essa crítica, ainda não conhecia Paixão e Sangue, mas já tinha visto dois trabalhos fundamentais de Sternberg, O Anjo Azul (1930) e O Expresso de Xangai (1932). Em todos os casos, impressiona o apuro estético de um cineasta que teve de equilibrar a tendência para a experimentação com a necessidade objetiva de alcançar o público. Aproveitando o imaginário do crime, vale a pena retomar uma categoria central de Scorsese, a do diretor como um contrabandista que deve equilibrar a ortodoxia de Hollywood com a inovação autoral. E quase sempre Sternberg acerta a balança. Cada um dos milhares de tiros do seu gângster primal é uma virtude.

Paixão e Sangue (Underworld) – EUA, 1927
Direção: Josef von Sternberg
Roteiro: Ben Hecht (história original), Robert N. Lee, Charles Furthman, Howard Hawks (não creditado), Josef von Sternberg (não creditado)
Elenco: George Bancroft, Evelyn Brent, Clive Brook, Fred Kohler, Helen Lynch, Larry Semon, Jerry Mandy, Alfred Allen
Duração: 80 min.

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