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Crítica | Padre Pio

Uma crônica sobre como assistir um Abel Ferrara nem sempre é uma experiência explicável racionalmente.

por Michel Gutwilen
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Acho que não tenho como escrever um texto formal sobre este filme de Abel Ferrara, somente relatar a minha experiência caótica. Ele provavelmente iria gostar. Sei que deitei na poltrona-espreguiçadeira da primeira fileira do Estação NET, o que significa a maior imersão possível numa sala de cinema, porque a imagem lhe engole, já que você precisa olhar totalmente de baixo para cima, e o som é perto demais para te machucar. Especificamente com Padre Pio, este olhar fez muito sentido porque fez da tela de cinema quase que como um olhar para Deus, da minha posição de inferioridade diante dele.

Me desculpem os católicos (também sou, não-praticante, eu acho), mas eu nem sabia quem era Padre Pio, eu queria é ver um filme de Abel Ferrara, santo do Cinema. Acabou o filme e continuo sem saber quem era este padre. Blasfêmia de Ferrara? Eu não me importo. Aliás, o título engana, então é melhor avisar logo para espantar os desavisados que não merecem receber a hóstia de Abel Ferrara: o Padre Pio de Shia LaBeouf é personagem secundário de um filme sem protagonista. Filme sem protagonista? Na verdade, acho que não. Existe um e ele é o Mal, força invisível atuante por todas as imagens aqui presentes.

Acho que não sei direito o que aconteceu na sessão de Padre Pio. Sei que tinha um núcleo da Igreja e outro núcleo de uma conspiração socialista em uma vila fascistas. Só depois de um tempo fui entender que eram histórias separadas. Era pra ter entendido isso logo? Montagem insana. Só que Abel Ferrara não trata a política e a religião separadamente, há um jogo de forças entre os dois polos, que se magnetizam pela montagem e vão se atraindo. O filme é um cozinhar de uma panela de pressão que cada vez ameaça mais a explodir. 

Da poltrona, eu estava imerso demais nas imagens para absorver tudo que era falado nos diálogos. Acho que estava acontecendo o nascer de uma revolução socialista sendo sussurrada e alimentada entre quatro paredes, em face do militarismo fascista. Não consegui decorar quem era quem neste núcleo, mas você sabe claramente identificar quem é fascista e socialista. Lembro também, vagamente, que Padre Pio lamentava muito, se questionava sobre o seu papel no mundo. Me marcou os olhos de Shia Labeouf em lágrimas, interiorizando para si muitas dores, sob a luz laranja das velas. Aliás, isto que me marcou, sei que havia muitas velas, mas também muitas sombras. Muita repressão de sentimentos, dor e revolta sendo iluminadas por essas chamas vivas, que lutavam contra as sombras da Noite e o Mal.

A partir daí, acho que fiquei chapado de hóstia naquela espreguiçadeira. Padre Pio chorava e gritava muito. Um homem morreu de tanto trabalhar. Padre Pio luta contra demônios no escuro e não vemos nada, seu rosto muitas vezes está nas sombras. Aparece a Asia Argento e faz um monólogo confessando incesto e pedofilia. Padre Pio grita muito com ela, quase expurgando seu demônio. Um cão uivava muito. Alguém corre pela floresta. Uma mulher pelada. Pessoas estão em uma casa e são cercadas por um inimigo invisível. O fascismo assusta muito, talvez mais do que os demônios da Igreja. Ou seriam as mesmas coisas? Acho que o Padre Pio senta pelado contra a parede. Quando a panela de pressão explode, um massacre acontece. No meio de todo sangue, a imagem de Jesus aparece algumas vezes. Acho que ele está chorando. 

Acabei de perceber que Padre Pio é um filme italiano falado em inglês. Meu deus, o que estou assistindo? Um filme de Abel Ferrara é sempre um delírio. Qual era a história mesmo? Deixo para outro contar, mas acho que um grande peso do Mal foi expurgado catarticamente dentro de mim a partir dessa sessão.

Padre Pio (2022) — Itália, Alemanha
Direção: Abel Ferrara
Roteiro: Abel Ferrara, Mauricio Brauzzi
Elenco: Shia LaBeouf, Cristina Chiriac, Marco Leonardi, Asia Argento, Vincenzo Crea, Luca Lionello, Brando Pacitto, Stella Mastrantonio, Salvatore Ruocco, Federico Majorana
Duração: 104 mins

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