Home TVTemporadas Crítica | Outer Range (Além da Margem) – 1ª Temporada

Crítica | Outer Range (Além da Margem) – 1ª Temporada

Twin Peaks encontra Yellowstone?

por Ritter Fan
20,1K views

É perfeitamente possível argumentar que Outer Range (Além da Margem, por aqui) tenta ser o encontro de Twin Peaks com Yellowstone, ou seja, o casamento do inexplicável, com o neo-western e que a primeira temporada não consegue ser muito bem nem uma coisa, nem outra. Mas isso seria criar rótulos simplistas de expectativas provavelmente inalcançáveis que só tendem a diminuir a série criada por Brian Watkins em sua estreia no audiovisual. Não que estejamos diante de uma obra que quebra convenções, que traz revelações de cair o queixo ou que subverta expectativas, pois nada disso realmente acontece, mas a jornada do caubói Royal Abbott (Josh Brolin retornando à TV depois de quase 20 anos), que tenta manter sua família intacta em seu rancho no Wyoming, é repleta de melancolia e de uma força interior que pode merecer o esforço pelo espectador que souber dosar expectativas.

E que esforço é esse? – alguns perguntarão, já assustados e talvez com razão. Muito simples: Watkins fez uma primeira temporada de uma série que poderia ser um ótimo longa-metragem. Eu defendo que a queima lenta de basicamente os seis primeiros episódios é importante para que os eventos que vemos acontecer em velocidade razoavelmente vertiginosa e cada vez mais espantosa e estranha ao longo dos dois últimos é importante para que nos importemos por cada um dos personagens e seus desafios pessoais, especialmente o torturado Royal, um homem que guarda um segredo terrível, mas, por outro lado, eu entenderei perfeitamente quem achar que tudo é muito vagaroso demais.

Mas tentemos, sem spoilers, quebrar Outer Range entre seu lado Yellowstone e seu lado Twin Peaks. No primeiro deles, o que acompanhamos é uma família unida que, a partir do momento em que Perry (Tom Pelphrey), o filho mais velho de Royal espanca até a morte Trevor (Matt Lauria), o filho do meio de Wayne Tillerson (Will Patton), rico rancheiro vizinho que cobiça parte da terra dos Abbotts, começa a perder sua estabilidade e a desmoronar. Seria, em tese, perfeitamente possível trabalhar uma linha narrativa rica com apenas essa premissa, pois ela não está solta no “espaço”, já que Rebecca, a esposa de Perry, sumira meses antes sem deixar qualquer rastro, o que coloca peso nos ombros do personagem.

Só que essa talvez fosse uma história demasiadamente comum e não era do interesse de Watkins abordá-la sem um molho especial, por assim dizer, e esse molho é, claro, a abordagem sobrenatural que se materializa na forma de um misterioso buraco que Royal descobre no rancho da família de sua esposa Cecilia Abbott (Lili Taylor) na manhã do dia em que Perry mata Trevor e na chegada da igualmente misteriosa hippie Autumn (Imogen Poots) que pede para acampar por ali também no mesmo fatídico dia. Esses ingredientes à la Lost e outros que vão sendo salpicados aqui e ali – como por exemplo Wayne querer parte do rancho dos Abbotts em razão de uma conexão com o tal buraco – não são incrivelmente originais ou pretensamente complexos. Ao contrário, há até uma tentativa de se tratar tudo como mais um dia estranho na vida de Royal Abbott, pelo que o que realmente constrói Outer Range é a combinação do mundano e do sobrenatural ou divino como o nada discreto subtexto bíblico não nos deixa esquecer.

Enquanto a razoavelmente (para usar um eufemismo) atabalhoada investigação do assassinato de Trevor é liderada pela xerife interina Joy (Tamara Podemski) que, por ser nativa-americana e lésbica, com esposa e filha, cria toda uma subtrama desenvolvida na base do óbvio ululante só para ela, Royal e Autumn começam, cada vez mais intensamente, a caminhar em rota de colisão, cada um dos dois guardando segredos dentro de segredos. Aos mais preocupados com soluções de mistérios – não é muito meu caso, confesso – a temporada oferece muitas respostas que, porém, só dão as caras nos dois últimos episódios, ainda que vários deles não exijam muito do espectador para somar dois mais dois. No entanto, o que realmente interessa é o vazio, aquele visualmente representado pelo buraco misterioso, mas que existe mesmo no lado espiritual dos personagens que povoam a série, começando por Royal, claro, mas não parando só nele.

Royal é o representante máximo da busca de um significado na vida, algo que, diria, fica evidente desde os minutos iniciais pela forma como Brolin trabalha seu personagem de maneira estoica, entristecida e tentando se segurar ali por um fio, desesperadamente fazendo o que é necessário para que sua família não se destrua sem perceber que a força destrutiva pode ser ele mesmo. E o reflexo disso em Perry, completamente sem rumo com o desaparecimento de sua esposa e tendo que cuidar de sua filha de nove anos Amy (Olive Abercrombie), é imediato, na base do tal pai, tal filho. Por seu turno, Rhett Abbott (Lewis Pullman), irmão mais novo de Perry, é o que tenta mais diretamente seguir a carreira do pai como toureador, mas é o que também mais sofre por essa proximidade com a família. E, do outro lado da estrada que divide os ranchos, há a gananciosa família Tillerson, com o centrado, mas ambicioso Luke (Shaun Sipos) lentamente colocando-se em oposição ao mais relaxado – e cantor – Billy (Noah Reid que também é músico na vida real), quando o pai deles fica incapacitado.

Em outras palavras, os mistérios complementam razoavelmente bem o drama familiar e vice-versa, mas Watkins não convence completamente na forma como guia sua história, primeiro ao abrir subtramas variadas que se tornam penduricalhos – como a já citada história da xerife, mas também a que lida com a mãe de Billy e Luke que aparece tão repentinamente quanto some e assim por diante – e, depois, por protrair a narrativa central por mais tempo do que efetivamente necessário e isso mesmo considerando minha tendência a apreciar a jornada de Royal Abbott. É como se o criador da série não tivesse muita certeza do que queria fazer de verdade, preferindo jogar seguro nos dois lados e, mais ainda, de certa forma “forçar” uma segunda temporada com a maneira completamente aberta – mas dentro da lógica, ou quase dentro da lógica do que foi apresentado antes – com que encerra o ano inaugural.

Outer Range até pode mesmo não inovar e seus dois lados bem diferentes, o terreno e o metafísico, nem sempre conversam tão bem quanto deveriam, mas existe um drama interessante e, se o espectador conseguir chegar até o final, cativante em toda a tragédia de Royal Abbott e família. Não sei, porém, o quanto mais a série tem para oferecer em temporadas futuras sem sacudir o status quo completamente – o que ela pode muito bem fazer da maneira como termina – e sem introduzir uma fila de novos mistérios, mas a criação de Brian Watkins consegue preencher um vazio que não tinha ideia que existia no subgênero das séries sobrenaturais de faroeste. Sim, talvez Twin Peaks tenha mesmo encontrado Yellowstone.

Além da Margem – 1ª Temporada (Outer Range – EUA, de 15 de abril a 06 de maio de 2022)
Criação: Brian Watkins
Direção: Alonso Ruizpalacios, Jennifer Getzinger, Amy Seimetz, Lawrence Trilling
Roteiro: Brian Watkins, Zev Borow, Lucy Thurber, Dominic Orlando, Naledi Jackson
Elenco: Josh Brolin, Imogen Poots, Lili Taylor, Tom Pelphrey, Tamara Podemski, Lewis Pullman, Noah Reid, Shaun Sipos, Will Patton, Isabel Arraiza, Olive Abercrombie, Deirdre O’Connell, Kristen Connolly, Matthew Maher, MorningStar Angeline, Matt Lauria, Hank Rogerson, Kevin Chamberlin
Duração: 400 min. (oito episódios)

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais