Depois dos surpreendentes Jogos Letais e 6 Balas, eis que Jean-Claude Van Damme retorna à sua pareceria com o diretor Ernie Barbarash e o resultado é novamente surpreendente, mais uma vez mostrando que o que o belga realmente precisa é de alguém que saiba dirigi-lo e um roteiro – este escrito por Joshua Todd James, em seu único longa até agora – que não subestime as possibilidades narrativas e dramáticas dos personagens durões que ele costuma viver. Osso Duro talvez exija mais de nossa suspensão da descrença do que nas duas colaborações anteriores com Barbarash, mas, se soubermos aceitar a premissa, o que segue é um filme muito interessante.
O elemento que “esgarça” a suspensão da descrença é que Deacon Lyle (Van Damme vivendo um personagem que poderia facilmente ser o mesmo de 6 Balas e teria sido bacana se fosse), assim que chega em Manila, nas Filipinas, tem seu rim direito extraído ilegalmente em seu quarto de hotel e ele passa o filme inteiro quebrando a cara de todo mundo como se esse “detalhe” fosse uma mera unha encravada. Mas, como eu disse, se aceitarmos que Deacon é, como diz o título em português, um “osso duro de roer” – ou mais duro ainda do que o normal e lembrarmos do quanto já vimos heróis de ação suportar de ferimentos sem sequer reconhecer que estão sentido dor (aqui, pelo menos, o protagonista toma morfina, desmaia, precisa ser carregado e assim por diante), não é muito difícil aceitarmos a base narrativa.
E a melhor razão para fazermos força para ultrapassar esse obstáculo é o surpreendentemente cuidadoso roteiro de James que faz questão absoluta de não deixar nada para coincidências ou como uma sucessão de eventos desconexos. A história, do começo ao fim, mesmo que as revelações venham a conta-gotas – inclusive a razão para Deacon ter viajado para Manila, o porquê de seu irmão George (John Ralston) não sair de seu lado e até mesmo como ele caiu tão facilmente no truque do roubo de órgãos sendo alguém tão experiente – é bem mapeada e bem desenvolvida, funcionando concentricamente a partir de sua premissa (o tráfico de órgãos) e fazendo todas as situações se encaixarem organicamente. No final das contas, apesar de toda a ação clássica (temos até espacate novamente!), toda a pancadaria e todas as mortes, com Deacon fazendo de tudo para recuperar seu rim, o que fica é mesmo a relação complicada entre o cínico e pragmático Deacon e seu religioso e temeroso irmão George, cada um procurando expiação de seus pecados de seu jeito, em um toque dramático raro de se ver na filmografia do belga.
Apesar da competência geral de Barbarash no comando desse tipo de filme de ação com orçamentos modestos, Osso Duro sofre mais de problemas de ritmo do que suas demais colaborações com Van Damme. Fica mais evidente a estrutura básica que intercala ação com longas conversas que nem sempre funciona muito bem e parece por vezes fazer o filme “esfriar”, somente para “esquentar” de novo vários minutos depois. Em outras palavras, o diretor tem um pouco de dificuldade de lidar organicamente com as qualidades dramáticas do roteiro em meio às sequências de ação, algo que fica particularmente destacado a partir do ponto em que Deacon e equipe se escondem na casa de veraneio de George. Mas, para não falar só de Barbarash, o roteiro por vezes escorrega em soluções mágicas para o dinheiro que Deacon precisa e uma estranha e sem sentido “onisciência” de Drake (Darren Shahlavi, que tragicamente faleceu antes da estreia), o principal vilão do filme.
Osso Duro tinha todos os predicados para ser o melhor filme de Jean-Claude Van Damme. Uma história séria, bem engendrada, que leva a discussões interessantes e que ao mesmo tempo permite toda a pancadaria necessária para o tipo de obra que inegavelmente é. Faltou apenas mais cuidado na direção, talvez na montagem também, e algum tipo de editorialização no roteiro para evitar saídas simplificadas para algumas situações. Seja como for, o longa consegue surpreender, especialmente por ser uma obra já avançada na carreira do belga, bem longe de seus dias mais memoráveis e famosos.
Osso Duro (Pound of Flesh – Canadá, 2015)
Direção: Ernie Barbarash
Roteiro: Joshua Todd James
Elenco: Jean-Claude Van Damme, Charlotte Peters, Darren Shahlavi, Aki Aleong, John Ralston, Jason Tobin, Philippe Joly, Brahim Achabbakhe, Andrew Ng, Mike Leeder, Ryan ‘Ranga’ Pyne, Marsha Yuan, Terese Cilluffo, Adele Baughan, TFBOYS, David P Booth, James Houghton
Duração: 104 min.