Pela forma serializada como foi originalmente publicada, Os Três Mosqueteiros, de Alexandre Dumas é, convertido em livro, uma obra de leitura estranha, mas muito rica em detalhes que a torna a propensa a ser adaptada das mais diferentes formas. No audiovisual, apenas uma das mídias a que ela foi convertida, adaptações vêm sendo produzidas com uma certa frequência desde nada menos do que 1903, a ponto de em 2023, ano em que a duologia de Martin Bourboulon – D’Artagnan será seguido de Milady, ambos filmados simultaneamente – começou a ser lançada, uma outra versão, por Bill Thomas, também chegou às telonas.
Mas enquanto os mosqueteiros de Thomas são completamente descartáveis, os de Bourboulon definitivamente não são. No entanto, é necessário que o espectador ajuste suas expectativas, já que o longa, com exceção de um plano sequência (falso) alongado muito bem feito e frenético que serve para criar a famosa conexão entre o jovem Charles D’Artagnan (François Civil), que deseja mais do que tudo na vida tornar-se um mosqueteiro do rei, com o depressivo e alcoólatra Athos (Vincent Cassel), o bonachão e sempre alegre Porthos (Pio Marmaï) e o mulherengo Aramis (Romain Duris), é bem velha guarda em sua abordagem e até, diria, seguro demais. Ou seja, não há grandes invencionices aqui que transformam seus personagens em super-heróis modernos ou um trabalho de direção banal que trabalha em cima da ansiedade de muitos espectadores em ver pancadaria a cada cinco minutos sob pena de perderem o interesse sobre a história.
Aliás, é muito interessante como a direção de arte é cuidadosa na reconstrução de época, especialmente nos figurinos sujos da quadra principal de personagens, algo que é acompanhado pela maquiagem e cabelos que fazem D’Artagnan, Athos, Porthos e Aramis realmente convencerem como um produto do século em que vivem, com o banho e o asseio em geral sendo luxos normalmente exclusivos da nobreza. A fotografia de Nicolas Bolduc é outro destaque, pois há muito não via um blockbuster (pelo menos em tese) usar quase que somente luz natural como fonte de iluminação, criando uma atmosfera autêntica em que velas e sol passando por janelas são as regras que, suspeito, afastam por completo (minha dúvida é se as tomadas externas noturnas não fizeram uso de fontes artificiais de luz) o uso de eletricidade.
Outra surpresa é o trabalho de adaptação de Matthieu Delaporte e Alexandre de La Patellière. Dumas, até justamente por sua obra ter sido publicada diariamente em jornal em 1844, escreveu sem limites e enxertou sua criação de uma miríade de detalhes e desvios narrativos, o que normalmente leva adaptações cinematográficas a escolherem uma linha de raciocínio apenas e seguir por ela. Aqui, porém, o roteiro de Delaporte e La Patellière encontrou o equilíbrio entre fidelidade e modernização para as sensibilidades modernas e os requisitos de uma produção dupla como essa, ainda que o resultado seja completamente avesso ao risco. É impressionante notar como a história acompanha de perto a original e como Bourboulon encontra o ritmo narrativo desde a primeira sequência de ação protagonizada por um D’Artagnan a caminho de Paris, fazendo com que seu longa pareça durar substancialmente menos tempo do que suas duas horas.
Mas isso não quer dizer que o roteiro seja perfeito. Se, como adaptação, a fidelidade à história que lida com o estratagema sórdido do Cardeal Richelieu (Éric Ruf), com a inestimável ajuda da traiçoeira Milady de Winter, ou apenas Milady (Eva Green) para os íntimos, em desestabilizar o reinado de Louis XIII (Louis Garrel) por meio da manipulação da infidelidade de sua esposa, a Rainha Ana da Áustria (Vicky Krieps), com o Duque de Buckingham (Jacob Fortune-Lloyd), o que leva até mesmo à criação de uma armadilha para Athos, é consideravelmente próximo ao material fonte, como puro texto, o roteiro peca muito. E esse pecado vem ou dos diálogos absolutamente simplistas e repletos de clichês ou de textos explicativos e contextualizadores que quebram o ritmo veloz da história. Delaporte e La Patellière têm clara dificuldade em criar as vozes dos queridos espadachins da literatura e, com isso, as atuações perdem a força. Nem mesmo o mais experiente Vincent Cassel, em tese vivendo o mais complexo dos quatro amigos, encontra espaço para ir além do arquétipo do homem que não liga para mais nada além de suas inamovíveis convicções, com François Civil não conseguindo emprestar um pingo sequer de sutileza a seu D’Artagnan.
No lado vilanesco, não há muito o que falar de Ruf como Richelieu, pois, aqui, ele é, ainda, um personagem que anda pelas sombras. Por seu turno, Eva Green, apesar de seu magnetismo natural e de um ou outra boa sequência – a que mais se destacou, para mim, foi a que Milady dança com Buckingham – está mais para um esboço de personagem do que alguém que efetivamente seja desenvolvido aqui. A promessa, claro, é que no próximo e último filme (a não ser que a intenção seja, depois, continuar a adaptar as continuações de Dumas), que tem como subtítulo o codinome de sua personagem, ela ganhe o devido destaque, até porque há o ensaio de um flashback que muito provavelmente se conecta com seu passado e “explica” sua malvadeza.
No final das contas, mesmo que o roteiro não exatamente encontre a voz de seus personagens, não há como tirar seu mérito na forma esperta como ele mantém uma improvável fidelidade à obra primígena. Além disso, a direção de Bourboulon, ao não dobrar-se por completo aos cacoetes narrativos e visuais de filmes modernos, entrega uma bem-vinda versão tradicional de um longa de capa e espada que, com mais do que competentes trabalhos de fotografia e de direção de arte, resulta em uma agradável, ainda que comportada, aventura com clássicos e amados personagens da literatura francesa.
Os Três Mosqueteiros: D’Artagnan (Les Trois Mousquetaires: D’Artagnan – França/Alemanha/Espanha/Bélgica, 2023)
Direção: Martin Bourboulon
Roteiro: Matthieu Delaporte, Alexandre de La Patellière (baseado em romance de Alexandre Dumas)
Elenco: François Civil, Vincent Cassel, Romain Duris, Pio Marmaï, Eva Green, Lyna Khoudri, Louis Garrel, Vicky Krieps, Jacob Fortune-Lloyd, Éric Ruf, Dominique Valadié, Julien Frison, Thibault Vinçon, Marc Barbé, Alexis Michalik, Patrick Mille, Ivan Franek, Nicolas Vaude, Charlotte Ranson
Duração: 121 min.