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Crítica | Os Primeiros Soldados

Rodrigo de Oliveira realiza um filme em que a existência material dá espaço à memorial.

por Michel Gutwilen
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SPOILERS!

Há filmes que exibem imagens que nos atingem de imediato no exato momento em que aparecem na tela, com todas as suas intenções e emoções se revelando no primeiro contato. Por outro lado, há obras que são como um exercício retroativo, de sensações mediatas, que agem nos espectador a posteriori, em que suas imagens estão em estado de potência e só depois elas atingem uma totalidade emocional e racional. Este é o grande movimento de Os Primeiros Soldados, que age em um terreno lacunar até sua metade e depois realiza uma extrema transformação, exigindo de quem assiste um exercício mental para repensar tudo o que foi visto anteriormente. Assim, as imagens que vemos perpetuam sua existência para além do plano material, agindo em um terreno memorial. 

Por que o diretor e roteirista Rodrigo de Oliveira decide fazer este movimento, que também mexe na estrutura cronológica da história, ao mostrar primeiro o presente para depois permitir que se revele o passado? O ano é 1984 e a AIDS ainda é um mistério, tratada como um tabu, alvo de várias especulações e vista pelo senso comum como doença contagiosa. Aos infectados, não é nem permitido o direito de morrer dignamente, pois os legistas não querem contato com os cadáveres. Dentro dessa contextualização, o que a narrativa faz é, em um primeiro momento, não revelar que seus protagonistas são positivos (ainda que possamos supor, dependendo do grau de familiaridade do espectador com o tema), depois fazendo o movimento de trazer à tona mais frontalmente o tema. Por isso, parece perfeitamente condizente que Rodrigo queria primeiro proporcionar uma sequência de imagens reprimidas, com seus personagens vivendo sob à sombra, diante do medo da estigmatização, para depois explodir, quando não há mais como segurar todo aquele sofrimento, expondo suas angústias para todos verem. Afinal, a imagem final não pode ser a da marginalidade, mas sim a do acolhimento. 

Deste modo, a segunda metade do filme permite com que se entenda melhor, por exemplo, porque o protagonista Suzano (Johnny Massaro) chora olhando para o extraplano; porque Rose (Renata Carvalho) decide cantar uma música tão melancólica no meio da alegria do ano novo; ou porque para o cinegrafista Humberto (Vitor Camilo) é tão importante aquele encontro com alguém de seu passado. Existe em todas essas cenas um grande trabalho de atuação, porque os atores precisam interiorizar um sofrimento que ainda não pode ser revelado, enquanto a direção de Rodrigo tenta aproximar o espectador emocionalmente daqueles corpos em seus momentos de intimidade, sempre frontalizado gestos como os beijos e a cantoria, de modo a fazê-los com que permaneçam na memória, para quando a narrativa exigir que se lembre deles. Como diz o sobrinho Muriel (Alex Bonini) sobre seu tio, é “como ele não tivesse ali” e é exatamente assim que a primeira metade de Os Primeiros Soldados se segue, por uma força centrífuga que leva a atenção para algo que não está no plano. 

Narrativamente, em sua estrutura, o caminho de Os Primeiros Soldados poderia ser muito diferente. Poderia se pensar que esta história conseguiria existir sem a presença do sobrinho adolescente, se fechando apenas no pathos de Suzano, em um ciclo pessimista. Contudo, sua existência se mostra fundamental para fazer uma ponte entre presente e futuro, de que pode haver uma nova geração de pessoas LGBQTIA+ podendo se amar com muito mais acesso à informação e segurança do que antes, de uma geração que não precisará andar na escuridão. Portanto, o filme recusa uma ideia de encerramento, se perpetuando, com Suzano passando a também existir em Muriel. 

Uma outra decisão que levaria Os Primeiros Soldados ao pessimismo seria o seguimento pela ordem cronológica, que assombraria o filme com a ideia de desesperança, tendo a ausência como sentimento final ao sair da sessão. Ao contrário disso, o processo reverso faz com que o momento da morte (nunca frontalizada) se localize no meio da narrativa, com a sua segunda metade fazendo uma função de preencher novamente as imagens de vida, de resgatar Suzano para além de sua passagem material, permitindo que as imagens-memórias perpetuem sua existência, que ultrapassa uma presença fantasmagórica, mas de que realmente há um renascimento. Tanto é que é difícil usar o termo flashback para definir essa parte do filme, pois ainda que se passe logicamente no passado, é quase como se ela seguisse uma cronologia espiritual, de elevação a uma outra realidade metafísica.

Inclusive, memórias não são só meras imagens do passado, mas também imagens de Cinema. Há nesta inclusão do dispositivo uma via de mão dupla. Dentro da narrativa, para Suzano, as imagens da câmera servem para documentar e jogar luz naquilo que é desconhecido, indiretamente também garantindo sua imortalidade ao ser capturado por ela. Enquanto se cria imagens, se está vivo. Ao mesmo tempo, o próprio filme de Rodrigo Oliveira sobre o qual se escreve também realiza o mesmo movimento, de poder existir como um olhar para um terreno não tão explorado que é esta época de obscuridade do início a AIDS, trazendo a tona novamente esse assunto para dentro do cinema contemporâneo. De todo modo, é a necessidade de fazer Cinema que serve como um espírito de resistência. 

Quando Os Primeiros Soldados sai do formato narrativo tradicional de decupagem para a captura de imagens de VHS, a mudança não é apenas na textura da imagem, pois muda completamente o espírito do que está em tela. Ganhando contornos documentais, a liberdade parece dominar a encenação, que se torna mais fluida e íntima dentro daquele espaço menor, com o filme permitindo que se conheça pela primeira vez, honestamente, aqueles personagens, se afastando da forte presença formalista de Rodrigo na primeira parte. Neste sentido, ainda que seja inteiramente fictício, é como se fosse realizado um movimento da “ficção” ao “documental”, o que aumenta ainda mais a sensação de conseguir captar a essência de Suzano, Rose e Humberto, que antes eram obrigadas a interpretar personagens, contidos, e agora são pessoas reais diante da câmera. 

Em uma certa passagem do início, quando Suzano está realizando uma performance, a câmera segue suas mãos para cima e, quando volta, vemos uma lágrima saindo de seu personagem. Ou seja, é quase como se ele só conseguisse chorar no instante em que não está sendo enquadrado. Ao fim, uma cena como essa jamais existirá, porque gradualmente o filme vai eliminando todas as suas repressões. Durante Os Primeiros Soldados, o corpo possui papel muito fundamental, em todos os aspectos. É o corpo que reflete os impactos físicos da AIDS e revela as fragilidades da existência humana. É o corpo que sofre angústias e esconde sentimentos. É o corpo que sente o calor humano por um beijo. É o corpo que se comunica por uma performance. Somos todos carne, para o bem e para o mal, não há porque ter vergonha ou medo do que se vê, até por isso as imagens dos machucados de Suzano nunca são feitas para chocar ou gerar desconforto. No fim, quando parece que resolve todas questões mundanas, há um avanço para um espírito de continuidade, com as cinzas sendo jogadas e um beijo selando o pacto de um novo ciclo. 

Os Primeiros Soldados (2021) — Brasil
Direção: Rodrigo de Oliveira
Roteiro: Rodrigo de Oliveira
Elenco: Johnny Massaro, Renata Carvalho, Clara Choveaux, Higor Campagnaro, Alex Bonini, Vitor Camilo, Vinicius Duarte, Joá Vi, Mariana Melquíades, Daniel Monjardim, Markus Konká
Duração: 107 mins

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