Home TVTemporadas Crítica | Os Outros: 1ª Temporada

Crítica | Os Outros: 1ª Temporada

As dificuldades em lidar com o "outro".

por Leonardo Campos
11,K views

Há algo de muito intenso e desafiador em Os Outros. Ao finalizar a primeira temporada da eficiente narrativa seriada, quem vos escreve se sentiu diante das mesmas reflexões empreendidas quando consumi e escrevi sobre as duas temporadas da igualmente assertiva e catártica Justiça. As dificuldades em agir de maneira ética e com base em princípios morais numa existência dominada pela corrupção são os principais pontos abordados pelos episódios que funcionam bem como entretenimento e ainda entregam doses generosas de crítica social densa, sem permanecer momento algum na superficialidade. Criada por Lucas Paraízo e com direção de Luisa Lima, Andrucha Waddington e Philippe Barcinski, a série produzida pela TV Globo, a trama gira em torno das tensões e conflitos de moradores de um condomínio de classe média, numa jornada dramaticamente assertiva sobre temas múltiplos, tais como a fluidez da hipocrisia em nosso cotidiano, a violência urbana que domina a cena em cada ponto de deslocamento em nossas andanças, além das interações sociais complexas entre vizinhos como ponto nevrálgico de seu desenvolvimento narrativo. Numa combinação de drama e elementos de suspense devidamente equilibrados, Os Outros nos apresenta um retrato crítico e realista das dinâmicas sociais contemporâneas no Brasil, uma nação imaginada dominada por paradoxos gritantes.

Os personagens jovens, catalisadores das crises que se estabelecerão ao longo dos episódios são importantes, mas antes, destaco o núcleo de adultos, as figuras ficcionais que supostamente deveriam agir com equilíbrio diante da experiência, mas se entregam aos elementos de suas respectivas humanidades, demonstração mais que perfeita da distância entre a teoria e a prática quando o assunto é inteligência emocional. Os relacionamentos interpessoais desempenham um papel fundamental na forma como as pessoas interagem e se conectam umas com as outras em diferentes contextos sociais. A convivência em condomínios, desenhada com detalhes ao longo dos episódios da série, é um cenário onde essas dinâmicas se tornam particularmente evidentes, visto que os moradores compartilham espaços em comum, enfrentam desafios em conjunto e precisam encontrar maneiras de lidar com as divergências e conflitos que inevitavelmente surgem nesse ambiente. E é aqui que reside o grande conflito da série. A falta de habilidade de lidar com o “outro”, uma possível alegoria não apenas para encontros e desencontros no espaço físico do condomínio que situa a produção, mas as dificuldades de conviver com a diversidade, principalmente quando, internamente, as pessoas vivem os seus “dias de fúria”.

Cibele (Adriana Esteves) é a mãe de Marcinho (Antonio Haddad). Eles formam uma família junto com Amâncio (Tomás de Aquino), seu marido, pai do adolescente. Do outro lado temos Rogério (Paulo Mendes), um jovem dominador do espaço recreativo do condomínio carioca onde a história se desenvolve. Os seus pais, Wando (Milhem Cortaz) e Mila (Maeve Jinkings) vivem um relacionamento razoável, haja vista as instabilidades do patriarca, um homem que descobriremos logo mais, ser alguém agressivo e perverso. A briga começa quando Rogério passa dos limites com Marcinho. Entre as famílias, há pessoas menos interessadas na resolução e mais focadas na manutenção de seus respectivos territórios. E egos. O cinismo de Lucia (Drica Moraes), uma síndica nada confiável, mas que passa uma ideia de boas vibrações também não ajuda em nenhum dos momentos onde a comunicação e a gestão de conflitos se faz obrigatória. É quando entra o misterioso Sergio (Eduardo Sterblitch), alguém aparentemente prestativo. O que vamos descobrir, em pouco tempo de desenvolvimento, é que por detrás dessa imagem há alguém perigoso, responsável pela dupla catalisação de crises na trama. Ele potencializa os conflitos entre as duas famílias, quando na verdade, dá a ideia de que pretendia ajudar.

Desse momento em diante, então, é só uma descida vertiginosa ao inferno.

A comunicação eficaz desempenha um papel crucial na prevenção e resolução de conflitos. A habilidade de expressar-se de forma clara, assertiva e respeitosa, assim como a capacidade de ouvir ativamente e compreender o ponto de vista do outro são elementos fundamentais para promover a harmonia e a cooperação entre os moradores de um condomínio. Mas, na série, isso não acontece. Ninguém parece se entender completamente e todos se posicionam como peças de um jogo de tabuleiro mordaz. Muitas vezes, mal-entendidos e desavenças surgem devido a falhas na comunicação, seja por falta de clareza nas informações transmitidas, por interpretações equivocadas ou por dificuldades em expressar sentimentos e pensamentos de forma construtiva. As emoções por aqui se expressam por meio de ações inconsequentes, pois o ponto catalisador dos conflitos é apenas um gatilho para situações internas dentro dos ambientes familiares envolvidos, já desgastados por motivações diversas. A tal da empatia, isto é, a capacidade de se colocar no lugar do outro, de reconhecer suas necessidades e sentimentos, e de agir com compreensão e solidariedade diante das dificuldades alheias é um elemento distante de se concretizar. Está em um nível abaixo de zero. Todos estão na defensiva. Um caos.

O respeito pelas diferenças, a valorização da diversidade de opiniões e estilos de vida, e a disposição para encontrar soluções que atendam ao bem-estar coletivo são aspectos cruciais para a construção de uma comunidade condominial harmoniosa e sustentável. Os relacionamentos interpessoais na convivência em condomínios apresentam uma série de desafios e complexidades que exigem habilidades como a gestão de conflitos, a comunicação eficaz, a construção de empatia e a prática da cooperação e do respeito mútuo. Isso é tudo tão bonitinho e geralmente integra convenções, regimentos internos e postagem nas redes sociais e envio de malas-diretas de administradoras de condomínios. No entanto, nos episódios de Os Outros, está bem distante de ser um conjunto de regras colocadas em prática. Ao reconhecer a importância desses elementos e desenvolvê-los de forma consciente e proativa, os moradores de um mundo ideal podem contribuir para a criação de um ambiente condominial mais harmonioso, colaborativo e enriquecedor para todos os envolvidos. Mas, como mencionado, teoria aqui não é aplicada corretamente na prática. O que acontece mesmo é a transgressão. E bem hedionda.

Assim, a primeira temporada da produção nos faz refletir que em meio a um cenário de corrupção endêmica e impunidade, a tomada de decisões éticas e moralmente corretas torna-se um desafio monumental para os indivíduos que buscam manter sua integridade. Como dito nas análises de Justiça, a tarefa hercúlea de ser ético diante de dinâmicas interpessoais que nos consomem profundamente, promovendo desgaste físico e emocional. Aqui, me detenho em uma das palavras-chave que definem, em meu ponto de vista, Os Outros: a corrupção. Em suas diversas formas, é algo que mina não apenas as estruturas políticas e econômicas de um país, mas também seus valores morais e éticos fundamentais. Seja na figura da síndica interpretada por Drica Moraes, ou então, no ex-policial que munido de estratégias não legalizadas para gerar renda, permite que a protagonista adquira uma arma e crie uma situação sem retorno para todos. Assim, diante de algo que poderia ser apenas um contornável conflito entre vizinhos acaba se tornando um campo minado de disputas e desentendimentos entre moradores.

No contexto de uma sociedade permeada pela corrupção, os indivíduos se veem diante de dilemas éticos e morais complexos. A pressão para se adequar às práticas corruptas dominantes, a fim de obter vantagens pessoais ou profissionais, pode ser avassaladora. Como não aderir ao que não é “moral” quando o seu único filho tem os direitos vilipendiados por outro jovem agressivo, inspirado pela educação doméstica nutrida por violência e masculinidade tóxica? Nesse sentido, a tentação de se corromper, seja por meio de suborno, tráfico de influências ou conivência com atos ilícitos, se torna uma realidade para muitos indivíduos, como vai acontecer não apenas com a personagem de Adriana Esteves, mas por todos os outros que precisam abrir mão diante daquilo que é definido como “certo” para pavimentação de um caminho repleto de atalhos perigosos. A decisão de agir com ética e moral em um ambiente corrupto exige não apenas coragem e determinação, mas também sacrifícios pessoais consideráveis. E, determinados personagens da narrativa preferem o caminho menos desconfortável. E é nessas escolhas que as armadilhas engatilham problemas para todos os lados.

Ademais, o texto dramático de Os Outros aborda de maneira eficaz a relação entre privacidade e vigilância, em cenas que destacam os impactos da falta de privacidade em ambientes urbanos e a sensação de estar constantemente vigiado por vizinhos ou câmeras de segurança, tema que se ramifica para o papel da tecnologia na vida dos personagens, como os smartphones e redes sociais estabelecidos como elementos influenciadores não apenas de suas interações e percepções em relação a si e aos outros, mas também como recursos narrativos preponderantes para conexões entre as variadas situações dramáticas dos episódios, desenvolvidos de uma maneira atenciosa, onde entrega de respostas é corretamente distribuída pelo roteiro, mantendo a tensão num formato que evita os prejudiciais altos e baixos de muitas tramas seriadas, algo que tem como consequência, o desinteresse do espectador. Diante da abordagem de temas correlatos, a produção também delineia o impacto da criminalidade e da busca por segurança, bem como tais questões afetam a vida dos personagens e suas percepções de medo e proteção.

E, apesar das tensões, Os Outros é uma série onde não há apenas antagonismo. Alguns momentos revelam o interesse dos envolvidos da trama central em agir com solidariedade, nos mostrando como o senso de comunidade pode ser tanto um fator de apoio diante da discórdia e da desunião, preponderantes por aqui. Por meio de sua temática central, temos também uma radiografia contundente das dinâmicas familiares dentro dos apartamentos, num tratamento além do superficial de “conceitos universais”, tais como amor, traição, comunicação, mentiras, etc. Em linhas gerais, nos entregamos aos momentos de suspense e ação que revelam o avanço cada vez maior da ficção brasileira em entregar produtos de entretenimento atrativos, juntamente com debates sobre questões que permeiam o cotidiano de seus espectadores, o espelhamento que permite a identificação e, consequentemente, o envolvimento para garantir a audiência. Em sua composição de personagens complexos e tridimensionais, com necessidades dramáticas e perfis esféricos delineados com esmero, temos a possibilidade da conexão que faz com que nos importemos com os seus destinos, pois são pessoas muito parecidas conosco.

Ao finalizar e aguardar a segunda temporada, a sensação com questionamento: como está complicado viver em sociedade, não é mesmo, caro leitor?

Os Outros – 1ª Temporada (Brasil, 31 de maio de 2023)
Criação: Lucas Paraizo
Direção: Lara Carmo, Luisa Lima
Roteiro: Lucas Paraizo, Fernanda Torres, Flavio Araujo, Pedro Riguetti, Bárbara Duvivier,  Thiago Dottori, Bruno Ribeiro
Elenco: Adriana Esteves, Eduardo Sterblitch, Thomás Aquino, Antonio Haddad, Gi Fernandes, Milhem Cortaz, Maeve Jinkings, Drica Moraes, Paulo Mendes, Letícia Colin, Sergio Guizé, Luis Lobianco, Mariana Nunes, Kenia Barbara, Stella Rabello, Guilherme Fontes, Pedro Ogata, Rodrigo Garcia, Magali Biff, Ana Flávia Cavalcanti, Gabriel Lima, Bruno Mello
Duração: 44 min em média por episódio, 12 episódios

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais