Os Nomes das Flores, do diretor Bahman Tavoosi é um filme de destruição e reconstrução de um evento histórico. Ao longo da projeção, que tem um ritmo propositalmente lento, uma fotografia dessaturada, puxando para tons térreos, e uma abordagem narrativa ficcional que imita a documental, vemos o desenrolar de um certo caso envolvendo Che Guevara. O recorte é a comemoração dos 50 anos da morte do guerrilheiro, e no centro das atenções está uma professora do interior, que diz ter servido sopa para o prisioneiro enquanto este recitava um poema sobre flores, poucas horas antes de morrer.
Estamos diante de um caso de produção de uma memória, de um (falso) fato histórico. Esse tipo de enredo me chama muito a atenção porque dialoga com a própria constituição da História como disciplina, assim como uma das pragas de criação de conteúdo em nosso tempo: o advento das fake news. O que essa professora faz aqui, porém, não é coberto por uma aura de negatividade política e social. O diretor faz, inclusive, uma abordagem pictórica (à la quadros de natureza morta) já no início do filme, como que retirando essa mulher, seu filho e seu falso fato (ou não seria falso?) do tempo presente, colocando-os na esfera da criação, algo que é cimentado pela narração que divide o longa em alguns blocos, lendo uma carta deixada por alguém, em tom de crônica política.
Para mim, o melhor filme que fala sobre a construção, desconstrução e reconstrução de um fato histórico é o brasileiro Narradores de Javé, uma obra prima que brinca com o registro da história, da necessidade ou invenção de fontes e da constante briga entre narrativa oral e o famoso documento histórico, que bem sabemos, pode ser verdadeiro… ou não. É justamente nesse patamar de criação que o diretor nos coloca aqui em Os Nomes das Flores. Vemos uma versão de um chamado fato ser construída, acompanhamos a sua repetição, a criação de uma importância em torno dela (só para ressaltar a pompa que uma “história dos heróis” possui em qualquer contexto social) e por fim chegamos à sua prova final, quando o convite dessa professora é retirado depois que “outras mulheres aparecem reivindicando como sendo delas a história da sopa e das flores”.
Tavoosi mantém uma abordagem humana, focando no enfraquecimento e tristeza da professora e marcando visualmente o passar do tempo com o desaparecimento dos pães na janela e o apodrecimento dos legumes em cima da mesa. Este é um dos blocos pessoais e mais fortes do filme, que não consegue o mesmo resultado ao tentar inserir, em alguns poucos momentos, um contexto para o filho da professora. A mesma estranheza se dá quando notamos o quão rápido é o descrédito que se abate sobre uma situação tão lentamente construída, numa segunda versão simples e sem nenhuma grande ajuda visual que nos faça ter uma verdadeira ideia de quem narra o novo cenário. Fora a primeira mulher e sua história, tudo se passa de modo despreocupado e pouco crível, talvez para reforçar a opinião do espectador quanto a dubiedade daquilo que se conta aqui, não importando quem conta.
Os Nomes das Flores é uma obra que nos faz pensar sobre a criação de histórias grandiosas, especialmente aquelas que entram para a esfera dos “heróis nacionais” ou mundiais. Mais um capítulo, mesmo que ficcional (e isso é deliciosamente irônico) sobre o quão dinâmica, complexa e perigosa é a memória e a herança histórica de uma nação.
Os Nomes das Flores (Los nombres de las flores) – Bolívia, Catar, Canadá, 2019
Direção: Bahman Tavoosi
Roteiro: Bahman Tavoosi
Elenco: Susana Condori, Bárbara Cameo de Flores, Fermina Torrez de Morales, José Luis Garibaldi Durán, Sergio Wilson Tapia Echalar, Abraham Flores Heredia, Jorge Hidalgo
Duração: 89 min.