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Crítica | Os Miseráveis, de Victor Hugo

por Leonardo Campos
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Integrante do cânone literário ocidental, Os Miseráveis é um romance que dispensa grandes interpretações. A obra é largamente conhecida, além de ter em sua estrutura um potencial literário para viajar por diversas eras históricas da humanidade, algo que até pouco tempo no campo dos estudos literários, chamávamos de “universalidade” do romance, termo colocado em questionamento, tal como uma série de vocábulos repensados conforme a sociedade tem avançado intelectualmente nos últimos anos. Com múltiplo panorama de traduções intersemióticas, o clássico de Victor Hugo, também conhecido por O Corcunda de Notre Dame e Os Trabalhadores do Mar, é a sua obra mais visceral no que diz respeito ao cenário político e social da França na época de sua publicação, isto é, 1862, ano corrente do efervescente século XIX, uma era de grandes transformações em diversos estratos da sociedade.

Na contramão do que se diz, ler Os Miseráveis não é uma tarefa apenas para gênios ou especialistas. A sua leitura trafega sem grande complexidade vocabular ou filosófica. O desafio mesmo é trilhar pelas digressões que parecem não ter fim, prolixidade que coloca o volume do romance como um obstáculo para parte dos integrantes das gerações ultradinâmicas da contemporaneidade, agrupamento de leitores conhecidos pela dinamicidade e superficialidade na comunicação e escrita, em suma, pessoas que não conseguem ler textos que não estejam de acordo com a velocidade dos padrões que adotamos na atual era tecnológica. Não é à toa que docentes da área precisam se desdobrar com metodologias ativas para conseguir, ao menos, delinear aspectos de obras clássicas para as “plateias” mais recentes, afinal, como exposto sobre a obra, enquanto houver ignorância e miséria sobre em nosso convívio social, livros como este não serão inúteis (adaptado).

Por falar em plateia, torna-se relevante trazer a importância das artes da era da reprodutibilidade técnica, em especial, o cinema e suas traduções da obra de Victor Hugo. Os Miseráveis é bastante popular e sua fama vem das versões da cultura cinematográfica, responsável por permitir o movimento inverso de entrada para alguns leitores que anteriormente conheciam os filmes, tendo acesso ao conteúdo literário depois, algo comum em nossa dinâmica de consumo de cultura no contemporâneo. Enfim, feitas as breves digressões sobre recepção e conhecimento do romance, vamos ao seu conteúdo. Publicado um pouco depois de meados do século XIX, Os Miseráveis perfaz uma trajetória de reconstrução história que compreende a Batalha de Waterloo e os Motins de Junho, ambos de 1815 e 1832, respectivamente, numa apresentação de um painel extenso de personagens que circulam e se relacionam nos desdobramentos da história.

Amplo demais, no entanto, significativo, tal estrutura panorâmica de criaturas permite que as críticas sociais do autor sejam expressadas por uma via “polifônica” relativamente centrada na figura de Jean Valjean, um homem com histórico de condenação que reflete em suas dimensões sociais e psicológicas, o contexto de miséria social e pobreza na França do período radiografado, uma época de exacerbação do caos para os pobres e continuidade dos privilégios para as esferas empoderadas. Algo muito semelhante ao nosso contexto, por isso a tal universalidade da obra. Um homem que rouba um pão para saciar a fome da família precisa da mesma correção que um criminoso de outra estirpe? É algo para se refletir num sistema que parece ainda não ter mudado, afinal, basta observar as reportagens sobre latas de leite furtadas e replicações de troncos em praça pública para a punição de “delinquentes”.

A saga de Jean Valjean é um fio condutor para os demais personagens e suas funções para o desenvolvimento da narrativa. Ao perder os pais bem cedo, é criado pela irmã. Condenado pelo roubo descrito anteriormente, Valjean inicialmente recebe a sentença de cinco anos, mas por decorrência de algumas fugas, torna-se presidiário por longos dezenove anos, tendo seu retorno social marcado pela rejeição da sociedade diante de uma pessoa que cumpriu pena por um crime. Alguma diferença com nosso panorama atual? Não. Ao encontrar ajuda na bondade do Bispo Myriel, tem a sua vida renovada e muda o destino. Ele adota e cria Cosette, a filha de Fantine, mulher com várias atribuições para tentar prover o mais básico depois que seu amante a abandona. Em seu emprego como costureira, é demitida por não conseguir cumprir as jornadas adicionais exigidas pela chefia. O resultado é a derrocada, seguida de uma lamentável vida de prostituição, nada deslumbrante e divertido como a vida de luxúria de outras personagens da época. A moça é título do primeiro volume do livro, passagem responsável por expor os primeiros contatos com Valjean e a ascensão social do ex-presidiário.

O Volume II é intitulado Cosette e traça a ligação entre Waterloo e o enredo, numa jornada de tensões que envolvem a perseguição sofrida por Valjean, homem que faz várias demonstrações de nobreza, em especial, o resgate da filha de Fantine, um elemento adicional de preocupação num momento que pedia foco e distanciamento de dispersões. A menina se torna a sua filha adotiva, quase a perder o novo pai por causa das insistentes investidas do Inspetor Javert, homem antagônico ao desenvolvimento de Valjean, por considera-lo alguém que precisa ser caçado. Ele faz de tudo para descobrir o passado do personagem que “não lhe é estranho”. O aristocrata Marius Pontmercy, personagem de ideias liberais, nomeia o terceiro volume, uma extensa digressão narrativa situada em Paris, voltada aos atos políticos do rapaz que logo conhecerá Cosette, situação que ampliará a presença de Valjean no cenário social, para o bem e para o mal de todos os envolvidos. É um volume que antecipa o acirramento político da obra em Idílio da Rua Plumet e Epopeia da Rua Saint-Denis, quarto bloco da narrativa.

No volume de desfecho, intitulado Jean Valjean, a baixa de personagens é ampla. Muitos morrem nos conflitos que se atenuam. O episódio nos esgotos de Paris, conhecido como “o intestino de Leviatã” é intenso, descrito por meio de longos períodos repletos de detalhes característicos da prosa romântica. Quem consegue chegar ao trecho é porque se habitou ao estilo de Victor Hugo, escritor que não poupa detalhes na construção dos acontecimentos de sua estrutura narrativa. Javert se suicida, parte filosófica da obra, interessante para debates ainda atuais sobre a lei, Cosette e Marius se casam, tal qual a cartilha do final feliz, Valjean morre e cada elemento da história é amarrado para que tudo se encerra sem pontas soltas. Nome imponente no Romantismo Francês, o escritor desenvolveu em Os Miseráveis um estilo que até então, era parte da produção literária anglo-germânica. Tecidos ao longo de 15 anos, os personagens costurados na malha narrativa do romance exalam as suas máximas, hoje tratadas em excertos de camisas, canções, redes sociais, dentre outros suportes para frases famosas do autor, tais como “morrer não é nada, horrível e não viver” ou “chega a hora em que não resta apenas protestar, pois após a filosofia, a ação é indispensável”. Importante: não são colocações de “plástico”. Sem adjetivações excessivas, o escritor cuida da estética por meio de vocábulos utilizados de maneira precisa.

Pensada como uma obra que reflete o dissolver das ideias iluministas, Os Miseráveis ressoou na cultura com o advento da era da reprodutibilidade, mas também teve o seu conjunto de influencias, em especial, numa pintura famosa, conhecida por trazer uma mulher que representa a liberdade e os seus ideais, empunhando uma bandeira da França, bem próxima de corpos empilhados e outros manifestantes na ativa, isto é, a inspiradora A Liberdade Guiando o Povo, de Eugene Delacroix, outro ícone da cultura francesa, metonímia da arte europeia do século XIX, importante para a realização de análises no bojo dos estudos comparativos. Por ampliar a possibilidade de leitura para burgueses e camadas letradas do proletariado, o romance é tido como um dos precursores da literatura que foge dos padrões classicistas e se distancia do exclusivismo das leituras elitistas em salões aristocráticos.

Victor Hugo descreve avanços científicos, destaca o problema da fome e suas consequências nas revoluções empreendidas pelo povo, reforça a importância do engajamento propiciado pelo poder coletivo quando a sociedade clama por mudanças, expõe momentos claramente associados ao mecenato, em descrições que não deixam de apontar o seu posicionamento crítico enquanto observador da realidade que lhe permite criar uma estrutura ficcional de caráter popular, mesmo que seu autor esteja do lado elitizado da história, sempre a gravitar dos privilégios de sua vida abonada. Não precisa, no entanto, se alijar das causas sociais só por causa do poder e dinheiro que gravita em torno de sua existência, não é mesmo? Isso fica para os idiotas e tapados políticos que existem em nossa humanidade desde os tempos mais remotos, assustadoramente ainda presentes na contemporaneidade, vide o nosso país como um espelho bem lustrado. Ademais, podemos apontar Os Miseráveis como um romance sobre muitas questões sociais e estéticas que fogem do escopo da crítica em questão, panorâmica e incapaz de dar conta do aprofundamento que a obra de vastos capítulos nos pede. Fica, no entanto, o mapeamento das abordagens que podem ser complementadas por sua leitura, em consonância com as minhas ideias, num feixe de concordâncias e discordâncias, combinado?

Os Miseráveis (França/1862)
Autor: Victor Hugo
Editora no Brasil: Martin Claret
Tradução: Regina Célia de Oliveira
Páginas: 1511

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