René Goscinny não tem receio nenhum de abordar temas difíceis e densos de maneira leve e divertida, mas sem deixar que a lição de moral escape pelo menos aos mais atentos. Se a crítica social já era lugar-comum nos álbuns anteriores, vícios sempre haviam apenas tangenciado as histórias, como orgias decadentes de cunho sexual já tendo servido de trampolim para Asterix entre os Helvéticos e o alcoolismo ter sido visto de longe em Asterix entre os Bretões. Em Os Louros de César, o brilhante roteirista mergulha de cabeça em um tema tabu especialmente em obras cuja grande parte do público é o infantil: o alcoolismo.
E não é que essa doença seja usada no que toca personagens coadjuvantes ou seja apenas algo visto de longe na história. Muito ao contrário, é ninguém menos do que Abracurcix e Obelix que sofrem dela quando, em um porre na casa de Homeopatix, irmão bem-sucedido de Naftalina que mora na Lutécia, e como resultado de uma disputa sobre dinheiro, Abracurcix convida o dono da casa para um ensopado perfumado com algo que dinheiro algum pode comprar: os louros da coroa de ninguém menos do que Júlio César. Obelix, ato contínuo, não só concorda com o chefe, como logo carrega seu amigo Asterix para a missão impossível em Roma.
Em outras palavras, o alcoolismo estão tão embrenhado no 18º álbum das Aventuras de Asterix, que ele é o gatilho narrativo que não fica só aí, retornando mais outras vezes para reiterar o problema, como no caso do jovem Gracus (filho de Claudius Calibradus, o romano que compra Asterix e Obelix do mercador de escravos Tifus), que chega todos os dias em casa completamente bêbado. No entanto, Goscinny não para por aí e cria talvez o mais adulto álbum da longeva série ao também tratar da escravidão (algo que já foi matéria-prima de Asterix e Cleópatra e O Domínio dos Deuses) e até mesmo androginia, sem contar com citações e referências particularmente mais sofisticadas como à arte – nas poses de um dos escravos de Tifus – e a acontecimentos históricos como a indireta ao passado de Júlio César que poucos conhecem em que ele já foi vítima de sequestro de piratas (na HQ, ele está fora de Roma justamente em campanha contra os piratas que, aqui, são os bons e velhos piratas clássicos da série, vistos já prisioneiros bem ao final).
No lugar de relaxar e escrever de maneira mais simplificada como muitos autores de sucesso acabam fazendo para abocanhar um público cada vez maior, Goscinny afia sua caneta e não se furta em subir o sarrafo narrativo mais uma vez, só que sem perder sua verve cômica e sem deixar de trabalhar todos os pesados aspectos que deseja abordar com seu clássico humor sofisticado que reverberará nas mentes com mais idade, mas potencialmente deixará sementes sadias que germinarão com o tempo nas mais tenras. Alguns poderão torcer o nariz para o que pode ser visto como preconceito de gênero, já que o mercador Tifus é especializado em escravos do mais alto gabarito que são vistos como “iguarias” por outros escravos, especialmente Leopoldinus, o escravo-mordomo do domus de Claudius, que chama Obelix e Asterix o tempo todo de “bibelôs”, “bonecas” e outros sinônimos. No entanto, tenho para mim que o objetivo foi justamente salientar a pseudo-sofisticação dos “produtos” de Tifus e não exatamente a opção sexual de cada um ali.
A estrutura da história em si é muito simples, quase parecendo um “filme de assalto”, mas com todas as peculiaridades de uma história de Asterix e funcionando com contundente veículo para o que Goscinny queria retratar. Com isso, o autor alcança um excelente equilíbrio que permite até mesmo que o leitor compre a ideia de que Asterix descarta o plano inicial de simplesmente entrar no palácio de César na base da bordoada porque os soldados de lá são melhores e a poção mágica dá super-força, mas não invulnerabilidade (pela primeira vez isso é mencionado, aliás). Mesmo que, quando a pancadaria come solta, esses soldados não se mostrem muito melhores do que os dos acampamentos que cercam a aldeia gaulesa, esse singelo artifício narrativo para justificar o complexo plano de Asterix que começa com eles “se vendendo” como escravos (a negociação é hilária!) acaba funcionando bem.
Albert Uderzo parece irrefreável em sua inspiração. Tendo Roma como cenário quase que 100% do tempo em uma história rara que só mostra a aldeia gaulesa na página final, o artista entrega um monumental trabalho de recriação histórica da capital do Império Romano que é de fazer o queixo cair e que parece ainda melhor do que quando a dupla gaulesa aparece por lá em Asterix Gladiador. Com mais cenários para desenhar e mais personagens para popular as cenas, Uderzo faz a história de Goscinny fluir muito facilmente sem deixar de inserir a infinidade de pistas visuais que é de praxe nestes álbuns. Curiosamente, Asterix e Obelix dão uma passadinha rápida novamente lá no Circus Maximus, desta vez para ser devorados por ferozes animais que estão há semanas em “dieta de salada”, permitindo que o leitor veja um outro lado do famoso “pão e circo”. Outras sequências de destaque são as do mercado de escravos em uma visão cômica de um assunto sério e as que se passam no domus de Claudius em que a geografia de uma típica casa romana é explorada em detalhes.
Os Louros de César é mais um grande acerto de Goscinny e Uderzo que provam que sofisticar histórias em quadrinhos é melhor do que emburrecê-las com narrativas de fácil digestão. Se toda dupla criativa dos quadrinhos, do cinema e da televisão fosse assim, não tendo receio de afastar parcela do público em razão de eventual hermetismo, talvez o cenário da produção intelectual mundial moderna fosse ainda melhor.
Os Louros de César (Les Lauriers de César, França – 1971/72)
Roteiro: René Goscinny
Arte: Albert Uderzo
Editora original: Pilote, Dargaud (serializada em 1971 e 1972 e lançada em formato encadernado em 1972)
Editoras no Brasil: Editora Record (em formato encadernado)
Páginas: 48