Antes era todo ousado, ‘tudo é permitido’, dizia, mas agora está aí todo assustado!
Todos desejam a morte do pai. Um réptil devora outra réptil… Não houvesse o parricídio, e todos ficariam zangados e sairiam por aí furiosos…
Os Irmãos Karamázov é um romance policial escrito por um filósofo. Nesta que é a última obra de Fiódor Dostoiévski, terminada em 1880, todas as questões buriladas pelo escritor russo ao longo de toda sua trajetória recebem um tratamento aprofundado. Ponto de chegada de inúmeras questões históricas, teológicas e morais que atormentaram o autor por décadas, o livro apresenta um grau de complexidade incomum, que levou figuras como Sigmund Freud e Friedrich Nietzsche a apontá-lo como a maior realização literária da história da humanidade.
Agora o tema é o parricídio. O eclipse de Deus e o arrefecimento do horizonte de imortalidade da alma acarretam, como sabe todo amante de Dostoiévski, a perda de qualquer lastro transcendental à moralidade; os valores tornam-se arbitrários, historicamente convencionados, o que permite aos homens uma ruptura radical com quaisquer escrúpulos. “Se Deus não existe, então tudo é permitido”- eis o axioma depreendido da filosofia do intelectual ateu Ivan Karamázov, filosofia esta que já pode ser captada em momentos anteriores da ficção de Dostoiévski, seja em Memórias do Subsolo, em Crime e Castigo, ou em Os Demônios. Se morre o Pai no céu, o que impediria a humanidade de forjar seus próprios padrões, segundo a conveniência e o oportunismo? Por que, afinal, não estaremos dispostos a ignorar o decálogo, cuspir nos tabus, ou, pensando radicalmente, matar, matar inclusive nosso próprio pai?
Pai esse que na obra, devemos convir, não mereceria esse nome. Fiódor Pávlovitch Karamázov é um homem de linhagem nobre mas empobrecido; beberrão contumaz, tomado pela lascívia, praticamente insensível aos filhos, ele vai angariando inimigos por onde passa. Seus três filhos são Dmitri, o já citado Ivan e Aliócha Karamázov, cada um apresentando personalidades muito distintas: o primeiro é orgulhoso, altivo, inconsequente e instável; o segundo, intelectualizado no mais alto grau, nunca para de pensar, está sempre atormentado por sua consciência hipertrofiada; Aliócha, o protagonista, é cândido, benigno e religioso. Uma a uma, essas figuras são trabalhadas com tanto esmero que é como se concentrassem o Universo, ou como se superassem a realidade pela sua conformação psicológica sumamente complexa.
Os maiores conflitos estão em que Dmitri e Fiódor concorrem para conquistar a mesma mulher, Grúchenka, cuja esperteza e sadismo vão dando esperanças ora a um, ora a outro, sem nunca decidir-se. O filho impetuoso ameaça em alto e bom som matar o pai, o qual além de tudo estaria supostamente lhe devendo parte de uma herança. Avesso à mornidão, Dostoiévski mantém febricitante a temperatura de todo o romance, proporcionando ao leitor um clima de violência iminente, no qual os personagens vivenciam uma experiência de limite, de ruptura, de cisão. A violência, porém, não é apenas física, é ideológica: quando fala Ivan, ou o seminarista ateu Rakítin, ou o liberal da geração dos anos 40, Piotr Miússov, é como se a subversão ganhasse materialidade fonética. Dostoiévski, aliás, como bem observou Mikhail Bakhtin, funda o romance polifônico na medida em que dá voz às suas criações, que pensam por si mesmas, filosofam, constroem teses que não precisam ter a ver com a visão do autor. Os personagens, emancipados dos grilhões do narrador, monologam ou dialogam extensivamente, cada um apresentando e confrontando sua cosmovisão.
Os Irmãos Karamázov não deixa também de ser um romance de formação às avessas. Às avessas porque não encontramos aqui grande espaço para o panorama, o sumário ou as longas trajetórias pessoais e familiares. Diferente de Os Buddenbrooks ou Doutor Fausto, para ficarmos em obras da lavra de Thomas Mann, o livro de maturidade de Dostoiévski quer a experiência concentrada e o tempo distendido, configurando situações radicais que não permitem interregnos amenos. Se Aliócha, o personagem principal, passa por mudanças psicológicas profundas, isso se dá num intervalo curtíssimo mas essencial (para termos ideia, basta dizer que as primeiras 500 páginas da obra cobrem apenas 4 dias). Ele fica um tempo no monastério de Zossima, seu pai moral; conversa com inúmeras figuras, tentando sempre resolver os problemas alheios; busca equilibrar a situação tétrica de sua família; depara-se, enfim, com uma gama de casos incomuns, funcionando como mediador equilibrado entre as partes desvairadas.
Após uma sucessão de ameaças e reconciliações falhas, eis que morre Fiódor Karamázov, o pai verdugo. Entra em cena, agora de uma vez por todas, Smierdiakóv, possível filho bastardo do patriarca. A dúvida judicial que tomará quase metade do romance é saber quem é o assassino, Dmitri ou Smerdiakóv. O ponto é que o mistério não ocorre para os leitores, a quem o narrador deu inúmeras pistas e revelou explicitamente a solução do problema. Acompanhamos todo o julgamento munidos de conhecimento privilegiado, numa completude epistemológica que inverte a experiência de O Processo de Franz Kafka. O mais curioso, e sobre isso darei poucos detalhes, é que apesar da minúcia das investigações, deparamo-nos ao fim com um erro judiciário.
Conta-se que Dostoiévski planejou Os Irmãos Karamázov para ser uma súmula de nosso tempo, uma espécie de Divina Comédia da modernidade. Faz total sentido, portanto, que este romance monumental dê espaço para questões prementes e contemporâneas ao autor. A ficção é concebida como espaço permeável às discussões do momento, de maneira que vemos debates presentes nas revistas de Dostoiévski, no Diário de um Escritor e em toda a imprensa da época. O fim da servidão em 1861, a reforma judiciária de 1864, a polêmica dos tribunais socioeclesiásticos, o espectro do socialismo e dos círculos revolucionários, o embate entre a ortodoxia cristã e o liberalismo europeizado emergente- tudo isso é tratado com detalhes, sendo plena a hibridização entre ficção e realidade.
O transe epocal, dessa forma, transfigura-se em drama psicológico que tende à universalização. Em Os Irmãos Karamázov, como em Grande Sertão: Veredas, a universalidade dos personagens não contradiz o que ela elas têm de regional, típico e datado. Como afirma a certa altura o promotor que investiga o parricídio, Hamlet significa para os ingleses na mesma proporção que a família Karamázov remete aos russos. Nessa lógica que oscila entre o pitoresco e o geral, Dostoiévski compõe aquela que para muitos é sua obra-prima. Um caso policial costurado com excelência; um romance filosófico, de tese; um retrato da Rússia e do Mundo; uma querela teológica; uma elegia feita em lamento à morte de Deus: seja lá como definirmos, trata-se de um caso singular na história da arte, que fixa como poucos o espírito de um tempo.
Como o tradutor é também um artista, cabem aqui os louros a Paulo Bezerra, que fez um ótimo trabalho na transposição da língua de origem para a língua de chegada. A tradução respeita a integridade da obra, tantas vezes cortada e censurada pelas ditaduras czarista e soviética, assim como recria muito bem o estilo dostoiévskiano, cheio de repetições e truncamentos, justamente porque carrega em sua forma a crise da trama. Por sua vez, as ilustrações de Ulysses Bôscolo expressam bem a febre do texto, com desenhos de traços fortes e desvairados, expressionistas, podendo inclusive abandonar o figurativismo em nome do registro da emoção. O apuro da edição é mais um chamariz para que os leitores se embrenhem num dos maiores feitos da literatura universal.
Os Irmãos Karamázov (Brat’ya Karamazovy, Rússia, 1880)
Autor: Fiódor Dostoiévski
No Brasil: Editora 34
Tradução: Paulo Bezerra
Ilustrações: Ulysses Bôscolo
Páginas: 999 (em dois volumes)