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Crítica | Os Enforcados (2024)

Macbeth da máfia dos bicheiros com Rio de Janeiro como palco.

por Roberto Honorato
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“E o ser humano quando tá com fome faz o que? Abre a boca”

É impossível debater o crime organizado no Rio de Janeiro sem mencionar a presença do que ficou conhecida como a “máfia do jogo do bicho”, um tópico que envolve esquadrões de morte, nomes poderosos e todo tipo de conspiração que não vou ter tempo de contextualizar com sucesso por aqui. Essa é a realidade utilizada como cenário para Os Enforcados, o novo longa de Fernando Coimbra, que esteve filmando no “exterior” nos últimos anos e retorna para o cinema brasileiro com um thriller policial estrelado por Irandhir Santos e Leandra Leal, com quem repete sua parceria desde o excelente O Lobo Atrás da Porta.

Valério (Irandhir Santos) e Regina (Leandra Leal) são o típico casal de classe média alta da zona oeste do Rio que acredita fazer parte de uma elite social, com uma vida boa e confortável, ainda que não sejam tão ricos quanto acreditam. Muito de sua influência vem do império que o pai e o tio de Valério construíram através do jogo do bicho, o sistema mais poderoso de bolsa de apostas do estado. Ainda assim, o casal está prestes a declarar falência, mas Regina tem uma ideia arriscada capaz de fazer com que eles se livrem das dívidas e assumam o poder. A dupla se envolve em uma espiral de violência e segredos que os deixa em uma situação cada vez mais delicada.

O próprio diretor tem feito comparações do longa com a tragédia Macbeth, porém pela perspectiva de Lady Macbeth, colocando uma enorme responsabilidade na atuação de Leandra Leal, que não decepciona, conseguindo ser a que melhor transita entre o drama e a comédia que fazem de Os Enforcados essa narrativa shakespeariana de incontáveis erros e tramoias criadas para tirar o alvo das costas do casal principal. A ambientação do Rio de Janeiro, com suas figuras de poder e atmosfera instável, é outra ótima ideia para criar um paralelo entre as personagens das duas obras. Além disso, há uma terceira camada de referência, traduzindo alguns clichês das histórias de máfia italiana para o contexto da máfia dos bicheiros – uma brincadeira com a ambiguidade da palavra que poderia criar uma mistureba de subtramas e alusões sem consistência alguma, mas o texto de Coimbra é inteligente o suficiente para unir tudo isso em um enredo coeso de diálogos afiados que sabe construir a dinâmica entre os núcleos dramáticos e também trabalhá-los separadamente sem que percam fôlego ou que a trama seja cansativa. Enquanto Valério gerencia a ascensão do casal, é Regina quem trabalha para impedir a queda do império que eles sequer possuem.

Há uma fragilidade na atuação da dupla, mas enquanto Irandhir Santos cria uma máscara para confrontar seus adversários e se transformar no estereótipo do mafioso frio e calculista, Leandra Leal tem uma performance impecável e consegue manter uma ambiguidade em todas as suas ações, ainda que na superfície pareça completamente óbvia e não consiga esconder as emoções, como acontece nas sequências em que Regina encontra sua mãe ou interage com agentes da polícia federal (que ela confunde com o FBI em uma cena hilária). O uso da comédia nessa trama tensa de crime organizado é outro elemento arriscado que o filme abraça e utiliza na superfície da narrativa onde a violência é introduzida nos primeiros minutos do longa como algo performático pelo próprio casal protagonista, um fetiche pelo perigo representado tanto na construção das personagens quanto no absurdo que o cotidiano do filme nos apresenta, ainda que muito do que assistimos não esteja longe da realidade.

Para além do texto está também a direção de Coimbra, bem mais controlada na sua estrutura visual que antes, algo que ele tem refinado nos seus últimos filmes e utiliza essa atenção para decupar ótimas sequências de ação, como acontece com uma cena de Regina no carro ou nos segmentos em que Valério se isola para colocar seus planos em prática. Com uma mistura de comédia, drama, ação e thriller policial que poderia ser facilmente estragada na mão de alguém que talvez tratasse o material de forma pretensiosa, Os Enforcados não está interessado em debater a condição política e social do Rio de Janeiro com tanta profundidade, apenas utilizá-lo de pano de fundo para enriquecer o lado dramático, o que acaba fazendo dele bem mais interessante e não deixa de levantar uma reflexão sobre a forma como os jogos de poder são uma grande performance na qual fica difícil distinguir entre o que é real ou ficção. 

Os Enforcados – Brasil, 2024
Direção: Fernando Coimbra
Roteiro: Fernando Coimbra
Elenco: Leandra Leal, Irandhir Santos, Thiago Thomé, Gustavo Arthidoro, Pêpê Rapazote, Ernani Moraes, Augusto Madeira, Ricardo Bittencourt
Duração: 123 min.

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